domingo, 20 de abril de 2008

Carta para o anônimo de Karlsruhe

Querido Anônimo de Karlsruhe.
Lamento informar, mas você não é tão anônimo assim.
Pode ser desconhecido para muitos, pode até ser anônimo para outros tantos.
Mas não para mim.

Karlsruhe te entregou.
Ou você mesmo se entregou?
Quis deixar uma pista, como João e Maria, que deixaram os farelos de pão pelo caminho, para que eu te seguisse através da floresta.

Você foi embora para a Alemanha com dezessete anos em busca do teu sonho.
Eu tinha recém voltado de lá. Sabia bem o que era viver naquele país de paisagens maravilhosas, onde tudo funciona precisamente, e as pessoas são... são...são...tão...”alemãs!”
Imaginava as dificuldades que você iria passar só, longe da tua terra onde canta o sabiá, dos teus amigos, da tua família.

Partituras embaixo do braço, você partiu. Concorreu com alunos do mundo tudo. Foi aprovado em várias escolas. Escolheu a de Karlsruhe.
Já se passaram dez anos. Você já não é mais o adolescente que partiu com uma mochila nas costas e um sonho na cabeça. Conquistou o mundo pelos teus próprios méritos. É um jovem pianista bem sucedido pelo teu esforço pessoal.

Mas a imagem que guardo no álbum de lembranças do meu coração é você e teu irmão em frente à árvore de Natal decorada em minha casa. Os dois tão diferentes fisicamente. Eu me encantava com os cabelos escuros e crespos dele, e os teus lisos e claros. Mas os dois tinham a mesma meiguice e o mesmo brilho curioso no olhar. O mesmo encantamento ao descobrir um enfeite que não tinham visto antes.
Jamais tocaram um ornamento. Rodeavam a árvore, apontavam, mostravam um para o outro.
Compartilhavam a magia da árvore de Natal.

Querido Anônimo de Karlsruhe.
Você não é mais o menino de calças curtas que se encantava diante dos enfeites de uma árvore de Natal.
Mas sei que você não perdeu a tua essência. E nunca irá perder.
Em Karlsruhe, em Curitiba, onde quer que você vá o teu sorriso sempre irá cativar quem estiver ao teu lado.

Quero que saiba o quanto você é especial.

Eu amo um Anônimo de Karlsruhe!

14/04/2008

sábado, 12 de abril de 2008

Era uma vez uma Galinha Ruiva...

A mulher grávida tricota um casaquinho para o bebê que está esperando. A TV em preto e branco dá uma noticia extraordinária. Ou seria o rádio?
O ano era 1964, o dia 31 de Março.
A filha adolescente passa pela sala e faz uma pergunta qualquer.
“Psiuu! Agora não, estou ouvindo as noticias.”

A mulher grávida caminha de volta para casa com a filha.
“Vieram me contar que você não gosta do bebê que vai nascer”, fala sem mais nem menos.
Ela fica chocada! Surpreende-se duplamente ao ouvir tal afirmação desvairada, primeiro pela ausência de sujeito, e depois pela sua falsidade.
Já amava aquele ser e ansiava por conhecê-lo e tê-lo em seus braços tanto quanto a mãe.
Ao chegar a casa trancou-se no quarto e chorou até adormecer.


Mês de junho. Sábado. Aniversário de uma amiga. Passou à tarde na festa. Quando voltou a mãe não estava. Tinha ido para o hospital. Finalmente o bebê estava a caminho!
Ela tinha então doze anos.


A irmã nasceu naquela noite, mas só pode conhecê-la no dia seguinte. Eram outros tempos quando regras eram obedecidas, e as visitas ao hospital eram restritas ao respectivo horário.
Foi com a avó materna.
“Finalmente alguém moreno nessa família” foi o seu comentário aprovando sua irmã com o seu selo de qualidade.
Por certo ela e o irmão tinham o selo de qualidade da avó paterna por serem mais claros.
“Sabe-se lá, os adultos são esquisitos” pensava ela, enquanto olhava o bebê através do vidro do berçário. Observou admirada/horrorizada que o seu bebê tinha o rosto sujo de sangue.


O primeiro dia que a família toda se aventurou a sair depois da chegada do novo membro, foi um domingo para almoço na casa dos avós. Aquele dia era o primeiro passeio da irmã. Naquele tempo recém nascidos permaneciam trancafiados no cofre, só tinham autorização para irem ao pediatra e voltarem para casa. Passearem só depois de dois meses.
O grande dia chegou! Foi preparado um arsenal de guerra:
fraldas (não, não era a época das fraldas descartáveis), cueiros (alguém sabe o que é isso?), calças plásticas, mamadeiras, (a mãe jamais usaria uma potinho da Nestlé), mantas, casaquinhos, sapatinhos, toucas (quem já viu um bebê de touca?), sacolas... tudo o que uma criança temporona poderia precisar e muito mais.
Afinal estavam indo passar algumas horas na casa da avó logo ali... imagine se fosse uma viagem para um lugar com menos recursos, o que não levariam.

O bairro onde moravam estava começando a ser habitado. Existiam muitos terrenos baldios, e muitos insetos. Portanto era preciso dar um jeito nas moscas e mosquitos. Nada melhor do que aproveitar a saída de todos e dar umas bombadas de Flit na casa. O tal do Flit era um inseticida colocado dentro daquilo chamado bomba. Um objeto rudimentar, pré-histórico, como um cilindro, e que num movimento constante de puxa e empurra de uma espécie de êmbolo que liberava o veneno bastante fedorento.
A pequena mudança já estava acondicionada, o pai, ela e o irmão acomodados dentro do carro aguardavam o momento da largada. A mãe ficou encarregada de fechar a casa e passar o Flit.
Finalmente! Todos prontos?
Podemos ir embora?
Não falta nada?
Cadê o bebê?
Como ninguém pegou?


“Me conta a história da galinha ruiinnva?” A irmãzinha pedia.
“Era uma vez uma galinha ruiva que encontrou um grão de trigo...”
Mal acabava...
“Me conta a história da galinha ruiinnva?”
“De novo?”
E durante infância da irmã a galinha ruiva plantou e replantou aquele grão de trigo, fez e refez aquele pão infinitas vezes, pois ela se recusou a introduzir bruxas e lobos no mundo da criança.
Queria poupá-la das coisas ruins da vida nem que para isso tivesse que contar sempre a mesma história:
"Era uma vez uma galinha ruiva"...


Num aniversário da irmã o tempo não colaborou nem um pouco. As crianças foram obrigadas a permanecer dentro de casa. Com um “pequeno” detalhe: a mãe não queria gritarias e nem correrias pela casa e fazia questão de permanecer em paz na sala de visitas conversando com suas amigas.
Foi designado para as crianças permanecerem no maior aposento da casa. Elas cheias de energia, num dia de chuva, numa época em que não havia DVD, karaokê ou videogames; um dia que absolutamente nada havia sido preparado para uma emergência desse tipo; uma situação que precisava ser controlada por uma adolescente que não tinha a menor idéia do que fazer para que as horas passassem rapidamente e aquela festa acabasse de uma vez por todas.
Evidentemente havia um líder agitador de massas que provocava a rebelião entre os convidados.
A pressão era muita e como uma panela Marmicoc ela explodiu, por um motivo qualquer brigou com todos e colocou-os de castigo, aniversariante e convidados, confinados, fechados no quarto!
Como a irmã deve tê-la odiado! Que lembranças terríveis deve ter daquele aniversário! Que comentários deve ter ouvido na escola nos dias seguintes a festa?
“A festa dela foi uma droga! A irmã dela nos deixou de castigo no quarto!”
Fazer o que?
De um lado a mãe pressionando:
“Dê um jeito nessas crianças!”
Do outro lado as próprias no auge da sua peraltice.
O mínimo que ela pode fazer pela irmã nos dias de hoje oferecer algumas sessões de terapia para solucionar o trauma da festa de aniversário confinado se houver. Caso contrário quem deve fazer terapia é ela para resolver a sua culpa, por ter sido uma estraga festas.
Se fosse hoje deixaria os bichos soltos e a mãe que se virasse. Onde é que já se viu?


Ela deveria ter uns dezesseis, dezessete anos quando a rua onde moravam começou a ser asfaltada. Nem estava pronta ainda e os meninos da vizinhança já desciam ladeira abaixo com seus carrinhos de rolimã. Ela estava louquinha de vontade de juntar-se a eles, mas o pai já havia decretado:
“Não quero te ver na rua com os moleques!”
“Cruzes! Que horror! Como é que ele fazia isso? Ler os meus pensamentos? Como é que ele sabia que era justamente o que estava querendo?”
Tudo bem ela não podia.
Mas o pai não falou nada sobre satisfazer o desejo incontrolável da irmã.
“Hei! Você quer andar de carrinho? Te dou um pirulito depois!”
Lá foram as duas de mãos dadas, carrinho de rolimã surrupiado do irmão embaixo do braço, se misturar com a molecada.
Riram e brincaram um bom tempo. Na maciota, pois um dos meninos arvorou-se de empurrá-las todas às vezes. A única vez que ela foi empurrar o carrinho torceu o pé e caiu com a mão esquerda espalmada no asfalto fresco.
“Merda!”
Uma das vizinhas solicita, correu acudi-la, limpar o sangue, tirar as pedrinhas do ferimento.
Acabou-se o que era doce.
Voltaram as duas de mãos dadas, ladeira a cima, carrinho de rolimã surrupiado do irmão embaixo do braço, ela mancando e ainda por cima com a mão toda ralada.
Se fosse só o pé podia dar uma desculpa qualquer, mas a mão! Ainda mais com aqueles pedacinhos de asfalto incrustados nela... não tinha a menor chance!
Hora do jantar. A família reunida. Tudo transcorria normalmente. O pai não percebeu nada mesmo estando sentado ao seu lado. Ela deu um jeito de manter a mão no colo, embaixo da mesa durante toda a refeição. Dos males o menor: já pensou se fosse a direita?
Mais um pouco e poderia ir para o quarto.
A irmã, sua cúmplice e companheira, sentada na sua cadeirinha ao seu lado, lambuzada de sopa, diz candidamente:
“Você não vai mostrar teu dodói pro papai?”

12/04/08





domingo, 6 de abril de 2008

Calamidade Pública

Antes eram chamados de kitinetes. Depois foram promovidos a studios. Agora são anunciados como apartamentos compactos. Tudo variação sobre o mesmo tema: o espaço mínimo para um ser humano viver. Quarenta metros quadrados... Esta medida deve comportar quarto, cozinha, sala de estar, jantar, lavanderia, escritório. O milagre da multiplicação.

Na maioria das vezes temos as coisas como tão certas que nem nos damos conta delas. Um exemplo?

O banheiro.

Banheiro?

Por que essa cara de nojo?

Não vai me dizer que não usa banheiro?

Caga onde? Na cozinha?

Não sei o porquê desse preconceito, tanto quanto do pobre do cômodo quanto do próprio ato em si. Conhece alguém que seja tão nobre, ou tão metido a besta, que nunca tenha cagado? Eu não. Aliás, queria ver alguém que ficasse sem fazê-lo por uns dias no que se transformaria. Por certo a merda iria consumi-lo, sairia por seus poros em forma de suor e teria bafo de merda também. Essa criatura corria o risco de desintegrar-se, de sumir pelo ralo caso puxassem uma descarga ao seu lado.

E continua com essa cara de enjôo mediante a simples menção da palavra merda ou aquele seu sinônimo que enche a boca, bo – s - ta?

Há cerca de cem anos não existam banheiros como os de hoje em dia. Para ninguém. Nem mesmo reis, rainhas ou o papa tinham um mísero banheiro. Já foi consenso entre os humanos que não adiantava ter grana porque todo mundo fedia igual. Ricos e pobres, o bodum era o mesmo.

Ela sempre tivera uma vida confortável. O apartamento onde morava com o ex tinha duas suítes, lavabo e banheiro de empregada. Mas os tempos mudaram. Separou-se. Mudou de vida. De casa. Foi morar num ...”apartamento compacto” . Uma gracinha! Casa de boneca!
Até que...

...a privada entupiu!

Vai me dizer que nunca passou por isso?

Aquela sensação maravilhosa do dever cumprido. Você olha para o vaso e pensa com orgulho:

“Que bela cagada!”

E dá a descarga, como sempre.

Só que a água, em vez de descer, enche, cresce, multiplica-se... aproxima-se da boca do vaso ameaçando transbordar e alagar tudo com sua obra prima malcheirosa. Sobe... sobe... e pára bem na beira.

Foi o que aconteceu naquela manhã.

Ela estava atrasada, muito atrasada. O despertador tocou, virou para o lado continuou dormindo. Quando levantou, já era. Para piorar, o intestino que normalmente não funcionava, resolveu dar o ar de sua graça. Não só uma, mas mais de uma vez. Seja a quantidade ou a qualidade, se soubéssemos o que causa entupimento, os rooters-canos da vida não precisariam mais existir.

Enfim a profecia cumpria-se: “Tudo o que dá errado ainda pode piorar.”

Não, não podia respirar muito fundo para ficar calma. Teria que dar um jeito. Manter a cabeça fria era essencial. Manter baixo o nível da água, idem. Deu uma descarga curta, pouca água.

Sobe, desce. Enche, esvazia.

Enfiou-se embaixo do chuveiro gelado. Detestava água fria. Mas, nessa altura do campeonato, fazer o que, já estava tudo perdido mesmo.

Olhou de rabo de olho para a privada ao sair do banho. A água esgotara toda. Só sobrou o que? A merda, óbvio.

Coca-cola lembrou, não dizem que desentope tudo? Quantos litros seriam necessários para jogar ali? Mas não tomava coca, só Pepsi, será que é a mesma coisa? E tem mais, quer dizer, menos, não tinha nem uma, nem outra, muito menos pretendia sair para comprar refrigerante para jogar na privada.

Decidiu: não iria mais a lugar algum enquanto não desse um fim naquele transtorno. Já pensou voltar à noite morrendo de vontade de fazer um mísero xixi e encontrar seu único banheiro naquele estado de calamidade pública?

Declarou guerra à bosta: “Vencer ou morrer!” E deu a descarga novamente.

A cada vez que voltava para certificar-se de que a água já havia escoado, lá estava aquele pedacinho de merda espreitando num cantinho escuro. Ela dava a descarga.

“Agora ele vai”, pensava.

E, realmente, por segundos ele desaparecia levado pelo jato da água. Para reaparecer provocativo logo em seguida. Tinha a nítida impressão de que ele estava zombando dela. Assim que ela virava as costas ele vinha, sabe Deus de que canto obscuro das entranhas daquela privada, para ficar encarando-a. Cada vez que olhava para dentro do vaso lá estava ela, a merda teimosa, a que fingia que ia, mas que sempre voltava para aterrorizá-la.

“Que merda!” Literalmente. Que corpo estranho ela tinha expelido? Um pedaço de ferro? De aço? O que era aquilo que a água não levava, diabo verde não dissolvia, desentupidor não desmanchava?!

Agora era uma questão de honra! “Ou ela ou eu”, pensou. “Esse território é pequeno demais para nós duas.” Tomou uma difícil decisão: a merda iria embora, nem que fosse no muque. Não se comoveria com aquele olhar pidão. Afinal, só tinha aquele banheiro, não podia bater na porta do vizinho pedir para usar o banheiro dele. E se acontecesse a mesma coisa? Procuraria o próximo vizinho? Bateria de porta em porta entupindo todas as privadas do prédio até que a Defesa Civil interditasse o prédio?

Como não tinha luvas de borracha, o jeito era improvisar.

“Sacolas de supermercado”, brilhante idéia. Embrulhou a mão até o cotovelo. “Uma sacola não era o suficiente. Duas... três por garantia... melhor quatro... talvez cinco, nunca se sabe. Precaução nunca é demais”. Aquela merda parecia ter vida própria, vai que resolvesse atacá-la. Para o embrulho ficar bem seguro uma camada de filme plástico.

Ajoelhou, fechou os olhos, mirou bem o centro e mergulhou o braço bem no fundo, tateando o infeliz buraco ou seja lá que raio de nome pudesse ter aquele local por onde a água deveria fluir sem problemas. Não encontrou nenhum corpo estranho que pudesse estar causando a obstrução.

Sentada ao lado do vaso sanitário pensou ter chegado ao limite da decadência de um ser humano. Quando ouviu um ruído esquisito de água. Algo como um gargarejo.

E a água finalmente escorreu, livremente, tubulação abaixo.

Descobrira o que onde está a verdadeira felicidade:
Não está numa viagem a Paris, nem num apartamento na 5ª. Avenida.
Não está num diamante Cartier, e nem numa Ferrari.

Ser feliz é saber que sua privada está livre e desimpedida para poder ser usada a qualquer instante.

sábado, 5 de abril de 2008

Um limão entre laranjas.

Existe família que não tenha ninguém com mais de setenta anos? Vasculhando seus conhecidos não conseguiu lembrar de alguém que não tivesse nem um único parente na chamada “melhor idade”. Sabia que um dia chegaria lá também. Os sinais externos eram visíveis tanto no espelho quanto fora dele.

Lembrava de quando era mais nova e gostava de pegar na pele flácida do braço da avó para sentir sua textura. Possivelmente a avó não achava graça, mas nada dizia.

Hoje só de olhar para o seu braço podia perceber que sua própria pele já não era mais tão jovem e firme por mais hidratada que estivesse de fora para dentro, de dentro para fora e todos os outros blás, blás, blás...

Ainda outro dia o olhar atento da filha da amiga sentenciou (uma criança de quatro anos é sempre um perigo!):

“Você não tem o pescoço dobrado!”

Criança querida e bem educada! Ela, na sua inocência, confirmou que o coquetel Molotov de vitamina C com colágeno aplicado nas dobras do seu pescoço em 365 picadas, graças aos céus, funcionara. Valeu o sacrifício de cada uma das agulhadas transformadas em caroço de ervilha, obrigando-a usar gola olímpica durante quinze dias em pleno verão.

Sempre se podia dar um jeito no lado de fora. Um reboco aqui, uma massa corrida ali, uma mão de tinta, uma reforma básica e fica tudo quase como novo. Mas o que lhe tirava o sono, deixando-a com mais olheiras e rugas, eram as atitudes gagá das mulheres de sua família. Morria de medo de ficar como elas. Genética é genética, todos sabem que a fruta não cai longe do pé...

Rezava para que com ela fosse diferente.

Psicólogo, Psiquiatra, PNL, Geriatra, Ortomolecular, qualquer coisa para o cérebro continuar funcionando.

Naquele dia, entrou na confeitaria, pediu um refrigerante com hipocrisol e uma trufa de chocolate para contrabalançar. Dizem as más línguas que as verdadeiras curitibanas pedem salada, tomam refrigerante diet e comem uma torta de chocolate como sobremesa. Para elas essa é uma refeição perfeitamente equilibrada. Maldade pura.

As mesas eram coletivas. Sentou quieta em seu canto pensando em nada, mas como audição é uma coisa que não tem botão de liga/desliga, começou a ouvir a conversa das companheiras de mesa. Duas senhoras de cerca de...hoje em dia é difícil precisar...mais de sessenta e cinco?
Que seja.

Uma já estava instalada. A outra chegou, o lugar estava livre, pediu licença, sentou. Não se conheciam. Começaram a conversa elogiando os doces.

A primeira falou que aguardava a filha. Tinham saído para comprar o enxoval da moça que estava para casar (começaram a trocar confidências). Depois do casamento, quando tivesse mais tempo livre, pretendia aprender a bordar.

A segunda incentivou-a dizendo que já tinha feito aulas de ponto cruz, recebeu diploma que lhe dava até direito de lecionar!

Uma contou sobre seu grupo de caminhada, a outra falou de suas aulas de dança e sobre os saraus de sábado à tarde, também chamados “bailes do pãozinho”:

“Porque baile do pãozinho?”, perguntou, curiosa.

“Do lado da aula tem uma panificadora, e descobrimos que um dos velhinhos comprava um pão Francês e punha no bolso da calça para fingir que ficava com tesão ao dançar!”, explicou a dançarina e riram às gargalhadas da artimanhas do garanhão frustrado.

Ela ouvia a conversa e não podia deixar de lembrar de sua mãe. Anos atrás, ao convidá-la para fazer um curso de bonecas de pano, obteve como resposta:

“Eu? Sair de casa para aprender a fazer bonecas de pano? Tudo o que deveria ter aprendido nesta vida já aprendi. Não quero aprender mais nada!”

Ela lembra de ter ficado tão indignada com a resposta que sugeriu para a mãe que comprasse seu caixão, colocasse-o no meio da sala, deitasse dentro e lá permanecesse esperando a morte chegar. Para ela alguém que se recusa a aprender alguma coisa é porque já morreu, essa foi a sua conclusão.

Lembrava também da tia de oitenta e cinco anos, que muito se orgulhava de aparentar setenta. Na maioria das vezes ela tinha uma cabeça muito mais aberta do que sua mãe que, essa sim, tinha realmente setenta. Com cabeça de oitenta e cinco, quem sabe? Mas, mesmo para a tia cabeça aberta, quando o assunto era alguma espécie de atividade, qualquer que fosse, até mesmo bordado, tricô ou crochê, a conversa virava tabu. Sabia tudo o que se passava no mundo, mas não fazia nada, não gostava de nenhum trabalho manual.

Ela, às vezes, provocava:

“Tia, eu venho sábado te buscar para irmos dançar no programa da terceira idade.”

A tia muito ofendida respondia:

“Imagine se vou dançar com aqueles velhos!”

Quem ela queria como par? Brad Pitt? Será que se ela soubesse do truque do pão Frances não mudaria de idéia?

Por essas e por outras, ia verificar qual era o santo dedicado à agricultura, e se tornaria sua mais fiel devota. Faria promessas, novenas, rezaria o terço de joelhos dia e noite, noite e dia. Pediria pelo milagre de ser um limão no meio das laranjas da sua árvore genealógica, ou então, que, com um impulso, caísse bem longe do seu pé.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

E Ragnilde foi a Madagascar.

Ragnilde era uma eloá que vivia na costa africana próxima da ilha de Madagascar.
Mas uma coisa a diferenciava, e muito dos outros membros da manada.
Ela era rosa. Rosa com pintas amarelas.


Ragnilde vivia muito só, pois por ser diferente não era bem aceita pelos outros elefantes.
Não era só o fato de não ser como os outros, mas sentir-se diferente, como se fosse de outro planeta.
Ela não era desprezada, mas era uma coisa que sentia e não conseguia explicar.


“Se ao menos eu fosse só rosa...”


“Se ao menos eu fosse cinza com as pintas amarelas...”


“Se ao menos eu me chamasse Marie...” pensava a insatisfeita e melancólica Ragnilde a eloá rosa com pintas amarelas.


Ela era incapaz de explorar o fato de ser especial, a única no mundo. Queria ser como todos os outros. Exatamente iguais. Todos cinza.
Todos com o mesmo nome.
Queria ser apenas mais um elemento naquela manada de elefantes que vivia na costa africana próxima da ilha de Madagascar.
Sentia-se muito só, mesmo na multidão do seu grupo. Mal sabia ela que a resposta para suas angústias estava muito mais próxima do que ela ousava imaginar.
O que Ragnilde não sabia é que todas as respostas estavam dentro dela mesma.


Uma tarde caminhava na praia ao entardecer. Olhando o sol se por avistou bem ao longe, na linha do horizonte a ilha de Madagascar.


“Será que lá naquela ilha existem elefantes cor de rosa?”


E preparou-se para partir. Despediu-se da sua manada e na manhã seguinte muito cedo quando o sol ainda nem havia levantado iniciou sua aventura.
Foi entrando no mar devagar e quando não podia mais caminhar começou a nadar.
Nadou.
Nadou.
Nadou até chegar exausta nas areias brancas da ilha. Como estava muito cansada da longa travessia, deixou-se ficar ali mesmo, deitada naquela areia fina e muito branca, que estava morna, aquecida que fora pelo sol que estava se pondo.


Ragnilde levantou os olhos e olhou para o céu ainda azul, onde a primeira estrela já piscava.
Então outra começou a brilhar. Depois outra. Mais outra e outra...
Ela olhava e pensava:
“Aqui da Terra todas as estrelas parecem iguais. Parecem, mas não são. Cada uma delas é um planeta diferente. Cada qual com sua característica, cada qual com sua individualidade. Um totalmente diferente do outro.”
Voltando seu olhar para o chão observou:
“E esses grãos de areia são exatamente iguais uns aos outros? Para meus olhos eles se parecem, mas seriam iguais? Tenho cá minhas dúvidas.”
“Os flocos de neve, a uma primeira vista parecem todos bolinhas, mas quando observados cuidadosamente sob lentes de aumento vê-se que eles tem diversas formatos como estrelas que não se repetem. Um arroubo de criatividade do Criador. Ele deveria estar especialmente inspirado quando criou os flocos de neve. Isso significa que a criatividade não tem limite. Não tem fim.” Concluiu.


Deitada na areia agora a noite chegara sob o céu estava coalhado de estelas prosseguia com seus pensamentos:
“Não posso deixar esquecer as flores, cada qual com seu perfume, sua cor e textura. Os próprios seres humanos têm as características básicas da raça humana como duas pernas e braços, cabeça, dois olhos, cabelos ( é, alguns não tem cabelos...), mas são todos diferentes. Nossos olhos pequenos só enxergam suas as semelhanças. Somos tão limitados, apesar de nosso tamanho de elefantes, que não conseguimos ver um pouco mais além daquilo que está diante de nossa tromba.”


“Eu sou Ragnilde uma eloá rosa, com pintas amarelas. Sou a única da minha espécie. Deveria sentir orgulho disso, sem ser presunçosa, mas não! Estou sempre infeliz por não ser como os outros.”
“Eu nadei até Madagascar. Nenhum outro membro da minha manada jamais se atreveu a tal feito. Isso fez de mim uma pioneira e reforçou ainda mais a minha condição de ser especial.
“Desde que aqui cheguei estou tendo essa oportunidade maravilhosa de poder refletir.”


Atenta ao rumo de suas idéias dava continuidade: “ Isso tudo é meu. São as minhas experiências. Posso contar para os outros membros da manada, mas não posso exigir, e nem aos menos querer que eles me sigam. Ou partilhem dos meus ideais, ou crenças. Não posso exigir que o grupo me aceite.
Cada um de nós está na sua própria etapa de crescimento e evolução. Tem os que vão rir e debochar, os que nem vão ouvir, e haverá, sim, os que irão se interessar e questionar. E quem sabe, até um dia seguir o meu exemplo, nadar até Madagascar e aqui nessas areias filosofar, ter a oportunidade de empreender essa viagem fantástica para dentro de si mesmo. “E ali descobrir coisas novas que estavam esperando o momento e a oportunidade certa para se revelar para nós mesmos.”


“Estou muito contente por ter vindo! Que bom que eu tive coragem de enfrentar meus medos e ultrapassar meus próprios limites. Estou exausta, mas creio que foi este cansaço que me permitiu desvendar o véu que encobria o que estava dentro de mim mesma. Amanhã cedinho nado de volta para casa para contar as novidades para todos. Que eu a eloá Ragnilde precisei nadar até Madagascar para descobrir que todos nós temos em nosso interior tanto elefantes rosa com pintas amarelas quanto cinza. Depende de nós escolhermos e querer qual deles é mais importante e fazer com que ele sobreviva e sobressaia mais que o outro. De posse desta informação podemos escolher ser feliz assim mesmo.”

06/03/2000

História de amor do gato e gata

A vida real não é como os contos da carochinha.
Ela é feita de descobertas, paixões e encontros. Também de desencanto e desencontros.


A gata é malhada. Mistura de muitas cores e muitas raças.
Pelo opaco sem brilho. Olhar ágil e astuto.
Postura rastejante, corpo e cauda pregados ao solo.
De andar sorrateiro extremamente hábil.
Seu universo não tem nenhuma fronteira. Vive o tempo presente.


O gato é marrom. Suas patas e orelhas são pretas. Resultado perfeito do cruzamento de raças puras.
Pelo lustroso, brilhante. Olhos azuis de ar entediado.
De porte elegante, andar perfeitamente harmônico com o seu perfil.
Vê o mundo de uma janela. Sabe que seu amanhã está assegurado.


A gata mora na roça e caça ratos.
Não pertence a ninguém e ninguém lhe pertence.


O gato mora na cidade e come ração balanceada.
Passeia no carro de seu dono.


A cidade é muito distante da roça, portanto a gata e o gato não se conhecem.
O dono do gato não pretende mudar para o campo, pois está realizado em meio à poluição e o progresso.
Os horizontes da gata vão para muito além daquilo que ela pode ver, mas ela não é capaz de imaginar o que seja uma cidade.
O gato e a gata, não irão se encontrar jamais.
Não vão namorar ou ficar. Nem se casar, e muito menos ter filhotes.


Além de todas suas diferenças o gato é gay.

terça-feira, 1 de abril de 2008

Primeiro de Abril –Dia da Mentira

Escrito em 1°. De Abril de 2000

Quando somos crianças esperamos por todas as datas comemorativas com ansiedade.
Natal, Páscoa, o dia do aniversário, esse então, parecia que nunca chegava!
No meu tempo esperava até pelo primeiro de Abril.


Ficávamos meio apreensivos, talvez nem quiséssemos sair da cama, ou quem sabe do quarto que era um lugar seguro, evitando assim que nos fizessem de bobos.


Agora que somos adultos, esse é só mais primeiro dia do mês igualzinho a todos os outro onze.
Não tem mais nenhum outro significado, a não ser que seja o dia de pagar alguma conta, água, luz ou telefone, sem as quais não podemos viver.
Ou então, melhor, que seja o dia de receber, a aposentadoria, o aluguel, ou a pensão do ex-marido, o que quer que seja, que no final das contas será insuficiente e não vai chegar até primeiro dia do próximo mês.


Será que para as crianças do Século XXI, do mundo globalizado e informatizado, essa data tem algum significado especial como tinha para a minha geração?


Eu esperava pelo primeiro de abril, imaginação à solta, queimando os neurônios, criando mentiras para pregar no irmão, na empregada, na colega de sala, e até mesmo, (que audácia!) na professora.
Imagino que me achasse o gênio criador de mentiras.


Lembro principalmente quando nossa vítima era um adulto. Estava na nossa cara deslavada, no nosso jeito- sem -jeito que aquilo era uma mentira de primeiro de abril.
Sabem o mais? Analisando agora, percebo que nós é que éramos enganados pelos adultos que fingiam que acreditavam nas bobagens que estávamos contando.


Deve ser por essa razão que nos Estados Unidos o primeiro de abril é chamado de Fool’s Day, ou seja o dia do bobo.


Aliás, deveríamos ter nós também o nosso dia dos bobos.
Bobo, no sentido de ingênuo, inocente, de criança.
Nesse dia deixaríamos de lado as nossas preocupações de adultos tão sérios e importantes, e dedicaríamos o dia para a criança que ainda existe dentro de nós.


Poderíamos, por exemplo, neste dia, livrá-la da gravata, do salto alto, do celular, dos “tem que”, dos “agora não posso”, dos “a tal hora em ponto”. Levaríamos nossa criança ao passeio público, ao cinema, ao parque. Comprar pipoca, balas de goma, balão de gás, daqueles que escapavam da mão e iam embora deixando-nos inconsoláveis.

Poderíamos permanecer na cama por mais tempo com aquela sensação de ser poderoso e estar cabulando a aula.
Quem sabe dar-lhe um brigadeiro, uma maçã do amor, algodão doce. Deixá-la andar descalça e pisar em poça de água sem receio de ser castigada. Levá-la para brincar de pique, pular corda, andar de carrinho de rolimã.


E que tal se ao invés de uma vez por ano, uma vez por mês déssemos uma maior atenção a nossa criança interior?



Ou então se prestássemos atenção nela todos os momentos do dia? Porque que ao nos tornarmos adultos, seres responsáveis , cumpridores de nosso deveres, temos que esquecer definitivamente dela? De tudo que gostávamos na nossa infância?


O que impede que naquela reunião chata seja servida pipocas para todos os membros da diretoria? Porque não pedir licença, e tirar os sapatos e pisar com os pés descalços naquele carpê que parece tão macio.


Com certeza os problemas terão outra dimensão, não parecerão tão terriveis, e nós sem a menor sombra de dúvida pareceremos uns bobos aos olhos dos outros.


Bobos, mas muito mais felizes e leves.

Primeiro de Abril, dia dos bobos.

Em Inglês Fool´s Day. O dia dos bobos. Para nós o dia da mentira.
O que é um bobo?
Quem é bobo?


Uma pessoa inocente, ingênua? Aquele que acredita no outro metido a esperto pronto a tirar vantagem em tudo?
O ingênuo com certeza será enganado. Ao dar-se conta ficará desapontada podendo até sentir raiva de si mesmo por ter feito papel de...bobo.


O esperto sente-se o máximo, orgulhoso de sua inteligência em conseguir mais um otário para cair na sua lábia.
Mas ele esquece ou talvez nem saiba que o Universo está atento a tudo o que ele faz. E que tudo isso lhe retornará um dia multiplicado.


Eu não estou me referindo a planos mirabolantes, golpes de mestres. Estou falando tão somente de pequenas atitudes do dia a dia, como um filho tentando enganar a mãe.
Ele pode ter sucesso por certo tempo, mas a mãe perspicaz descobrirá as artimanhas...ou pode fingir que não vê. Mas no mínimo no futuro ele também terá filhos...


Uma pessoa inocente terá desafios no decorrer da vida como qualquer outra. Mas o espertalhão terá muito mais mesmo que não se aperceba disso.


Conheço uma pessoa que tudo de ruim lhe acontece, sócio passa para trás, casa pega fogo, é assaltado, já perdeu a conta das vezes que teve o carro roubado. Vive a lamentar sua má sorte:
“ Tudo acontece comigo! Sou um azarão!”


Mas ele não presta atenção nas suas ações, pois na hora de cobrar por seus serviços sempre dá um jeitinho de cobrar a mais do que o combinado, não devolve o que empresta, esquece o que promete, usa o que não lhe pertence sem pedir licença... porque será que ele é tão “azarado”?


Com certeza, o dia em que ele começar a dar a devida atenção a esses ”pequenos “ detalhes quotidianos, e começar a tratar o outro com o devido respeito ao invés de fazê-lo de bobo, a sorte sorrirá para ele.


Um outro, com grande poder aquisitivo, foi procurado por uma pessoa da família, desesperada e aos prantos, para pedir-lhe quatro mil reais para pagar o financiamento da casa que estava atrasado. Ele recusou dizendo que não tinha esse dinheiro.
Três meses mais tarde ladrões entraram em sua casa.
Ele afirmou: “Não tenho dinheiro! “
O Universo simplesmente conspirou ao seu favor e tornou a sua afirmação real.

Chego então ao reino da mentira com um exemplo:


Um amigo muito próximo me pede cem reais emprestado. Por maior boa vontade que eu tenha, eu não posso aJudá-lo nesse momento. Explico meus motivos, conversamos, tudo está bem.
Mais tarde fazendo uma arrumação numa gaveta, o que encontro?
Duzentos reais, que havia escondido há muito tempo e tinha esquecido completamente da sua existência.
Alegro-me pois agora posso ajudar meu amigo. Deixo o dinheiro sobre um móvel e saio a sua procura.
Nesse meio tempo ele volta e ao ver o dinheiro ali imediatamente pensa:


“Que sacana mentiroso! Tinha o dinheiro e não quis me emprestar. Isso não é amizade...”


Pergunto:
Onde está a mentira?
No momento que eu recusei o empréstimo realmente eu não tinha os cem reais, aquela era a minha realidade.


Ao imaginar que eu tinha o dinheiro e deliberadamente recusei o empréstimo meu amigo criou a sua realidade.


O uso da palavra mentira é muito subjetivo, pois a partir do exemplo citado percebemos que o que pode parecer uma mentira para um é a verdade sob o ponto de vista do outro.
Portanto vamos ter boa vontade e muita paciência com o outro e tentar perceber que a realidade dele jamais será a mesma que a nossa antes de chamá-lo de mentiroso.


Tenha um ótimo 1º de Abril!

1°./04 /2008