sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

HallowAl ou NatalWeen

– Décimo terceiro?
– Férias remuneradas?
– Vale-transporte... Aonde ele pretende ir? Aqui é o Polo Norte!
– Hora extra paga, adicional noturno...
– Aposentadoria! Aposentadoria! Onde já se viu isso? Duende aposentado!
– Quanto mais eu penso, pior fico.
– Eu devia ter contado com o meu sexto sentido e nunca ter deixado o duende barbudo se aproximar da fábrica de brinquedos – bufava ninguém menos que Papai Noel, enquanto amontoava os presentes de qualquer jeito no trenó.
– Chegou todo humilde, com aquela conversa mole de que tinha vindo no lombo de uma rena, lá do Nordeste do Polo, onde tudo é mais gelado e nada cresce.
E eu, coração mole que sou, fiquei morrendo de pena do coitado. Ainda mais depois que vi que lhe faltava um dedo...
– O que fiz, o velho coração de manteiga?
Empreguei-o no setor ABC, como é chamado o local onde os brinquedos educativos são fabricados. Não demorou muito e o atrevido começou a pôr suas manguinhas de fora. Começou a fazer arruaças, a botar minhocas nas cabeças dos outros duendes, a promover comícios dentro da fábrica... Veja só se isso é possível?!
– Juntou mais uns dois, três, e fizeram um tal de sindicato. Começaram a me enfrentar e exigir coisas...
– Trinta dias de férias.
– Repouso semanal remunerado.
– Carteira de trabalho assinada... Onde já se viu tamanho abuso?
– As crianças esperam um ano inteiro para ganharem seus presentes no Natal. Qual é a obrigação dos duendes? Fabricá-los. Chova. Faça sol. Neve. Neve... Enfim, o que quer que aconteça, no dia 23 de dezembro tudo tem de estar pronto, embalado, para que eu possa entregar cada presente a seu respectivo dono.
– Porém, o que fez o subversivo? Incitou os companheiros a fazer greve! GREVE! Meus duendes, na véspera de Natal, estão em greve! Não dá para acreditar. Isso só pode ser um pesadelo.

Nesse instante Papai Noel ouve uma gritaria. Há um tumulto imenso na porta da fábrica.
Quando o duende agitador das massas aparece, é ovacionado pela multidão.
– Mais um comício! – suspirou Noel – Esse sujeito está ficando muito inconveniente. Ele que espere eu voltar da minha entrega de presentes, que vou dar um jeito nele.

O bom velhinho acaba de arrumar os pacotes no trenó e olha o relógio:
– Pelas minhas próprias barbas, estou atrasado! Atrasadíssimo! Preciso me apressar, pois não posso desapontar as crianças.
Acomodou-se no trenó atulhado, assoviou e chamou as renas pelos nomes, como fazia todos os anos:
– Agora, Dasher! Agora, Dancer!
– Agora, Prancer e Vixen!
– Vamos, Comet! Vamos, Cupid!
– Vamos, Donner e Blitzen!
– É com você, Rudolph, vamos lá, garoto!
Enquanto o trenó taxiava na pista preparando-se para a decolagem, Papai Noel podia ouvir o slogan revolucionário dos duendes:
– Duendes unidos jamais serão vencidos! Duendes unidos jamais serão vencidos!
– Blag! E mostrou a língua em direção ao grupo de arruaceiros. O trenó chacoalhou e, com muito custo, conseguiu decolar.

Dasher falou para Dancer:
– Espero que não entremos em nenhuma zona de turbulência.
Prancer acrescentou:
– Entulhado do jeito que está, este trenó é um perigo!
Blitzen disse:
– O problema não é a quantidade dos presentes.
Vixen repetiu:
– Não é a quantidade...
Blitzen continuou
– Pois sempre trouxemos muitos presentes.
–Muitos presentes – repetiu Vixen.
– O problema desta vez é que eles estão mal distribuídos – concluiu Comet.
- Mal distribuídos... – ecoava Vixen.
Cupid pergunta:
-–Vixen, qual é o problema?
– Problema? Problema? Onde está o problema? – responde uma Vixen, angustiada.
– Você está esquisita, repetindo tudo – continuou Cupid.
Vixen, olhando para os lados meio desconfiada, responde:
– Estou é? Sei lá, me sinto inquieta, ansiosa.
– Humm! E por que você não toma um ansiolítico então? – palpitou Donner.
– Tá maluca? Falaram as renas uníssonas.
– É tarja preta – afirmou Dancer
– Tem efeito colateral, e hoje é uma noite em que temos de estar muito atentas – completou Donner.
Fez-se um silêncio, e as renas olharam umas para as outras. Depois todas olharam para Rudolph, que se mantivera alheio à conversa.
– Rudolph, você não andou comendo daquela grama de gambá de novo, comeu? – perguntou Comet.
– Mas é claro que comeu – disse Dasher.
– Olha só como o nariz dele está mais vermelho – falou Cupid.
– Vocês estão parecendo umas tias velhas e rabugentas. Paz e amor, coroas.
Rudolph, numa “nice”, cantando um reggae maneiro, começou a fazer gracinhas pelo céu...
As outras renas ainda tentaram avisar o comandante do voo, mas este, exausto pelos acontecimentos dos últimos dias, recostara-se no saco de brinquedo e dormia profundamente.

Ao acordar, Noel se sentiu muito bem. Estava mais leve. Nada como um bom cochilo para restaurar as forças.
Pouco a pouco coisas estranhas começaram a lhe acontecer.
Ele falava com as crianças, e elas não lhe respondiam; aliás, nem criança, nem adulto, nenhum ser humano.
– Estão me ignorando como se eu fosse invisível. Devem estar muito aborrecidos comigo por eu ter chegado atrasado – pensou.
Pousou o trenó no jardim de uma casa, e o cachorro, ao ouvir os guizos, veio recebê-lo alegremente.
– Olá, amigão! Que bom ver você também.
Mas, ao aproximar-se, o cão eriçou os pelos e começou a rosnar para ele.
– Cachorro temperamental. Uma hora me ama, outra me odeia.

Foi se aproximando da porta e entrou na casa.
– Essa gente não devia deixar a porta escancarada desse jeito, qualquer um pode entrar.
Porém um fato chamou sua atenção: no hall havia um grande espelho, e, ao passar por ele, não viu sua imagem. Voltou. Parou diante do espelho e deu um berro:
– AAAARRRRRGGGG!!!
– Onde estou? Onde estou?
– Porta aberta? Porta aberta?
– Será possível?

Voltou para a porta e percebeu então que esta se encontrava fechada. Temendo que o que estivesse pensando fosse real, colocou primeiro um pé, e este passou através dela...
Também a perna, a barriga...

– AAAARRRRRGGGG!!!

– Se sou capaz de passar através da porta, se as pessoas não me enxergam, mas o cachorro sim, se a minha imagem não se reflete num espelho... então...

AAAARRRRRGGGG!!! Sou um fantasma!!!

Correu para fora. E lá estava seu trenó... fantasma, suas renas... fantasmas...

Vixen cochichava na orelha de Rudolph:
– Nós não te avisamos que não era para comer da grama de gambá?

Noel está desacorçoado.
– E agora? Estou morto.
– O que será de mim?
– Eu tinha o meu dia, o meu trabalho, o que vou fazer agora?

Ouve então uma voz que diz:
– Calma, meu velho, nem tudo está perdido.
– Quem está ai? – pergunta curioso.
– Somos nós – respondem várias vozes.
– E quem são vocês?
– Você promete que não vai fazer nenhum escândalo quando nós aparecermos? – perguntou uma das vozes.
Ele prometeu.

Para sua surpresa foram chegando fantasmas, bruxas, múmias, vampiros, lobisomens, Frankstein, a Família Addams...
– O que estão fazendo aqui?
Todos começaram a falar ao mesmo tempo.
– Ordem! Ordem! Assim ninguém se entende. Frank, você fala!
- Pois, é, Noel, lamentamos o que lhe aconteceu. Mas a realidade é que você e as renas morreram, passaram daquela para melhor, vestiram o paletó de madeira... Chame como quiser... Você já era. E não dá para ficar chorando. O negócio é curtir e aproveitar o que a vida... ops! a morte tem de melhor.
– Como assim? – pergunta ele, curioso.
– Ué, você não estava ali, há pouco, todo choroso: “Eu tinha meu trabalho, eu tinha meu próprio dia... O que é que eu vou fazer agora?”
– Nós também temos nosso dia, também temos nosso trabalho e viemos convidá-lo para vir a nossa festa.
Papai Noel pensou um pouco e considerou a oferta. Não podia nem queria mais voltar para o Polo Norte; era um fantasma sem dia agora.

– Quer saber, Frank, se é para o bem de todos e a felicidade geral do Halloween, diga a todos que aceito.
– Noel é bom camarada, Noel é bom camarada, Noel é bom camaaaaarada! Ninguém pode negar! – cantavam fantasmas, bruxas e múmias.
– Temos uma surpresa. Só iríamos contar se você aceitasse – Mortícia entrou na conversa. Daqui a algum tempo, quando as pessoas se acostumarem com você como personagem-fantasma, mudaremos o nome da nossa festividade.
– Mudar o nome do Halloween? Como? – pergunta ele.
– Nada mais justo – continua Morticia. Você pode escolher entre HallowAl ou NatalWeen.
Ele estava emocionado.
– Mas não precisa ser agora, ainda temos uma viagem a fazer – interrompeu Frank. Então vamos, pessoal, todos no trenó do Papai Noel, voar para o mês de novembro.

Era uma estranha comitiva aquela que voava céu afora: um trenó-fantasma, com o Papai Noel idem, dentro dele Mortícia Addams e sua família, Frankstein, múmias, vampiros, lobisomens... E acompanhava o cortejo uma revoada de morcegos, bruxas em suas vassouras e fantasmas.

Os tios maus-caracteres de Gasparzinho, Strech, Fatso e Stinkie, voavam ao lado de Rudolph.
– E aí, cara, como é que é?
– Pois, é... – respondeu a rena pensativa. Como é que é pergunto eu... Como é que funciona essa vida de fantasma?
– A gente tem algum sindicato?
– Trabalhamos com carteira assinada?
– Repouso semanal remunerado?
–Recebemos adicional noturno ou hora extra?
Os três olharam uns para os outros com cara de ponto de interrogação.
Rudolph, percebendo que eles não faziam a menor ideia do que ele estava falando, disse:
– Companheiros, já vi tudo. Vocês estão sendo explorados pelas elites. Mas não precisam se preocupar; cheguei aqui para ajudar vocês. Precisamos resolver isso assim que chegarmos a novembro.
– Eu cultivo o hobby de jardinagem nas horas vagas – dizia Rudolph. Por acaso nesse tal de novembro tem uma grama...




26 de novembro de 2009

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Vestida para Dançar



Se possuía alguma frustração por não ter tido um filho homem, ninguém jamais soubera. Tivera quatro filhas mulheres e, mesmo contra a vontade da esposa, escolhera seus nomes de acordo com aquilo que a vida lhe reservava no momento de seus nascimentos.
Haviam acabado de se casar quando os primeiros bombardeios alemães chegaram ao vilarejo onde moravam. Ouviam notícias de uma guerra e esta lhes parecia tão distante dali, pois imaginavam em sua inocência campesina que estariam sempre protegidos pelas montanhas que circundavam o vale onde se localizava, quase que esquecida do mundo, sua pequena vila.

Medo.
Um sentimento que tanto pode levar à morte quanto salvar uma vida. Pode ser tão intenso o ponto de endurecer todos os músculos, fazendo com que se permaneça estático, paralisado no mesmo lugar. Ou intenso da mesma forma, fazendo correr e fugir sem jamais olhar para trás.

Num ímpeto, movido pelo desejo de permanecer vivo e poder desfrutar o amor recém-descoberto com sua jovem esposa, decidiu fugir.
Tomou conhecimento de um navio que zarparia para a América, e malgrado todas as dificuldades, mesmo cheio de incertezas, dúvidas e preocupações, mas com um sonho no coração, eles partiram.
A viagem foi longa, assustadora. Não tinham conforto algum, pessoas adoeciam, o perigo rondava em forma de submarinos inimigos. A mulher começou a passar mal, ele se desesperou. Questionava-se se a fuga havia sido a decisão correta. Que faria sozinho numa terra estranha se ela viesse a falecer?

Agradeceu a Deus quando em poucos dias chegaram ao seu destino sãos e salvos. Assim que atracaram puderam procurar um médico, que não diagnosticou a morte, e sim a vida: ela estava grávida!
Ele aceitou a gravidez da esposa como um bom presságio, e quando a menina nasceu chamou-a Esperança.
O começo foi muito difícil. Todavia, cada vez que olhava para a filha, com seus olhinhos brejeiros e seu sorriso inocente, encontrava forças para seguir adiante.

Anos se passaram. Começavam a colher os frutos de seu trabalho árduo quando nasceram as gêmeas. A vida tornava-se mais leve, assim as meninas receberam os nomes de Ventura e Felicidade.
Ela ainda amamentava as gêmeas quando engravidou outra vez. Nasceu Fé, que nunca haviam perdido durante todos aqueles anos.

Porém, homem religioso que era, ao ouvir o sermão dominical, uma frase permaneceu ecoando dentro de si:
“Fora da caridade não há salvação!”
“Teremos outras filhas”, e num rompante registrou o bebê Caridade.

Mas não tiveram mais filhos. Somente as quatro meninas: Esperança, Ventura, Felicidade e Caridade.

Filhas casadas, netos criados. O casal, com sua missão cumprida, partiu. Ela morreu em março. Ele não sobreviveu um mês longe de sua companheira de jornada e faleceu logo em seguida.

Esperança beirava os setenta. Das irmãs, por ser a primogênita, foi a que acompanhou mais de perto as dificuldades dos pais no processo de adaptação àquela terra estranha. Enviuvou cedo e criou os filhos sozinha. Contudo as adversidades da vida não a tornaram uma mulher amarga. Pelo contrário, estava sempre alegre, conservando o mesmo sorriso que incentivara o pai a não desanimar. Tinha uma palavra amável para quem precisasse.
Gostava de dançar e nunca dizia não quando recebia um convite para um sarau destinado à “melhor idade”, por mais cansada que pudesse estar.
“Quem dança seus males espanta” dizia.
“Não é assim...” corrigiam os filhos, depois os netos... “...é quem canta seus males espanta”.
“Vocês já me ouviram cantar. Pediram que nunca mais abrisse a boca, tamanho desafino. Deixa eu espantar meus males com aquilo que sei fazer” respondia rindo.

Naquela tarde arrumou-se com especial esmero. Cabelo bem-penteado, unhas feitas. Passou perfume, deu uma última olhada no espelho. Estava pronta, vestida para dançar.
Foi atropelada bem próximo ao local onde se realizava sua tarde dançante.

Contrariando o dito popular, Esperança não foi a última que morreu.

Florianópolis, 9 de outubro de 2008



Corky


Seu nome,
Gata, é Corky
Dizem que dá azar
Pois é preta, alvo de superstições
Estou enfeitiçada
Já não sei viver
Sem você.

sábado, 12 de dezembro de 2009

Insanidades

O copo a sua frente encontrava-se meio cheio.
Aquele.
Pois já esvaziara outros tantos que perdera a conta. Nunca fora de beber, no entanto, naquele momento, bebia a fim de ter coragem para a insanidade que pretendia cometer. Sabia perfeitamente quais as consequências de seu gesto, sabia que era uma viagem sem volta.

Não iria pensar no que diriam seus colegas engenheiros ou sua noiva.

Virou o copo de chofre. Saiu do bar. Olhou para a arma letal que tinha nas mãos... Fechou os olhos. Assinou o cheque.
No domingo de Carnaval, estava “ma-ra-vi-lho-sa" vestido de Carmen Miranda.
12 de abril de 2009

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Feliz Gatal


Como é mesmo aquela frase que vocês costumam falar?
“O melhor da festa é esperar por ela.”

Realmente, desta vez dou minha mão à palmatória e, um tanto a contragosto (não posso supervalorizar ainda mais o ego de vocês), sou obrigado a admitir que estão cobertos de razão.
Vejam essa comemoração que ch
amam de Natal... No em momento que você sobe lá no sótão e começa a descer com aquela enorme quantidade de caixas que lá permaneceram durante o ano todo guardando essas coisas que você chama de enfeites natalinos, entro em êxtase.

Caixas, caixas, muitas caixas. Uma profusão delas. De todos os tamanhos! Fico até tonto, pois não sei qual escolher. São tantas! Quero entrar em todas elas. Dormir um pouquinho dentro de cada uma.
Minhas, todas minhas!
Mas também preciso ficar esperto, cuidar para que não tampem a em que eu estiver e me levem para o sótão. Só eu sei o quanto você fica desatinada nessa época.

Depois tem a árvore. É a maior caixa de todas. Fico eufórico quando vejo você vindo escada abaixo carregando aquela caixona. Quase nem consigo me aguentar tamanha é minha excitação para abri-la e começar a montar o pinheirinho.
Eu acho o máximo como os galhos se encaixam no tronco; parece até um pinheiro de verdade.
É tão real que eu não resisto e pulo nele... derrubando tudo.
Você não gosta muito. Eu saio disfarçando, como se não fosse comigo. Que pena que o cão não está por perto para levar a culpa.

Olha lá! Aquele enfeite não tinha visto ainda! Ele parece muito divertido. Você tem tantos que não vai se importar se eu brincar um pouco com ele.
Um tapa daqui. Um tapa dali. Uma corrida maluca, mais um tapa... GOOOL! Ponto para mim.
Ops! Pela sua cara, você não está muito satisfeita. Estraga prazer...

IUUUUPIIII! Chegou a hora de pendurar os festões. Corro para cá e para lá caçando as pontas deles, até que todos estejam em seus devidos lugares... pendurados na árvore.
Decorar a casa para o Natal é uma grande alegria para nós gatos.

Mas o dia da ceia, ao contrário, é um pesadelo.
Todas aquelas pessoas e seus respectivos pés, indo e vindo. E os pestinhas que correm atrás de mim:
– Gatinho, gatinho, onde está você?

Eu me encolho, me escondo, procuro ficar invisível, mas sempre tem um pentelho que acaba me encontrando.
Acabou?
Não, ainda tem os presentes. O meu maior pesadelo são os carrinhos. Os que andam sozinhos, que batem, que fazem meia-volta, volta inteira. Às vezes aquela coisa está pertinho do meu esconderijo; eu fico bem quieto só rezando para que o presente se quebre logo.
As meninas são uns amores? Ledo engano. Querem fazer de conta que sou boneca, me pôr no carrinho para passear e me dar mamadeira.
Vou te contar... vida de gato em festa de Natal é muito complicada.

Por isso não dou minhas caras. Quando ouço a campainha tocar anunciando o primeiro convidado, eu desapareço. A cada ano estou ficando mais experiente nessa área. Podia até escrever um livro.
Pensando bem, não é uma má ideia.

Quando percebo que a casa silencia, levanto minhas orelhas, aguço meus bigodes, presto muita atenção e, pé ante pé, ou melhor, pata ante pata, vou saindo de onde estou escondido.

UAU! Papel! Muitos papéis de presente espalhados pelo chão. Pulo sobre eles, arranho, rolo.
Sou feliz novamente.
Que cheirinho bom é esse?
Olha só, deixaram um presente para mim! Um passarinhão fora da geladeira. Se está fora, é meu.
É um, é dois, é três... lá vou eu!

Passarinho bom esse... Ops! Foi mal... Imagino que ela não vá ficar muito satisfeita com essa zona.
Mas qual é a utilidade de um cachorro numa casa se não para levar nossa culpa?
Não quero nem estar por perto quando ela chegar à cozinha. Portanto, uma saída estratégica é o comportamento ideal e mais sensato nessas horas.
Certamente estarei muito mais seguro no meu novo esconderijo.

Não sei por quê, mas festa de Natal me deixa tão estressado!
27 de dezembro de 2008


terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Balas de goma

Sobre o balcão, o pote de balas de goma de todas as cores e formatos.
Sentia o cheiro do café acabado de coar e ainda assim carregava a pequena maleta de viagem.
O café, não tomou; porém, como de hábito, serviu-se de um punhado de balas.
Fez um carinho no gato, que teimava em enroscar-se entre suas pernas.
E partiu sem alarde.
Ainda podia sentir o cheiro do café quando ouviu o barulho do gato derrubando o pote de balas.

28 de junho de 2008

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Hoje resgatei um ser humano!

Autor Desconhecido

Hoje resgatei um ser humano! Os seus olhos encontraram os meus, enquanto ele caminhava pelo corredor olhando para dentro dos canis.
Imediatamente, senti sua necessidade e sabia que tinha de ajudá-lo.
Abanei minha cauda, mas não muito para não assustá-lo.
Quando ele parou em frente ao meu canil, tampei sua visão para que não visse o que eu tinha feito no canto de trás. Não queria que ele soubesse que ninguém ainda havia me levado para um passeio lá fora. Às vezes os funcionários do abrigo estão muito ocupados e eu não gostaria que ele pensasse mal deles.
Enquanto ele lia as informações a meu respeito, no cartão pendurado na porta do canil, eu desejava que ele não sentisse pena de mim, por causa do meu passado. Só tenho o futuro pela frente e quero fazer diferença na vida de alguém.

Ele se ajoelhou e mandou beijinhos para mim. Encostei meus ombros e minha cabeça na grade para confortá-lo. As pontas de seus dedos acariciaram meu pescoço; ele estava ansioso por companhia.
Uma lágrima escorreu pelo seu rosto e então ergui uma de minhas patas para assegurá-lo de que tudo estaria bem.

Logo, a porta de meu canil se abriu e o seu sorriso era tão brilhante que imediatamente pulei em seus braços.
Prometi mantê-lo em segurança.
Prometi estar sempre ao seu lado.
Prometi fazer todo o possível para ver aquele sorriso radiante e o brilho em seus olhos.
Tive muita sorte dele ter vindo até o meu abrigo. Há ainda tantas pessoas por aí que nunca estiverem em um abrigo de animais...
Tantos humanos para serem salvos... Pelo menos eu pude salvar um!


Hoje resgatei um ser humano!

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Minnierella, e o sapatinho que não era de cristal.

– Quatro! Eu tenho quatro anos!
Com uma mão na cintura, batia o pé e mostrava os quatro dedos uma enfurecida Zizá, aquele espirro de gente, uma semana antes do seu quarto aniversário.
Não tinha pressa de que o dia da festa chegasse rápido para brincar com os amiguinhos, para comer doces, ganhar presentes, roupas novas... nada disso! Sua pressa era em ter quatro anos, em tornar-se uma criança um ano mais velha. Só isso.
Coisa de criança. Pois, enquanto os adultos querem mais é diminuir sua idade, a criançada é louquinha para aumentar a delas.

Por mais que me esforce, por mais que procure nas minhas lembranças, não consigo encontrar o momento em que me tornei adulta. Se bem que, ao olhar para trás e mesmo para os lados observando a criançada, percebo que não há UM momento. Um Cabo da Boa Esperança, que, ao ser cruzado abre os caminhos para as Índias com seus mistérios a serem desvendados.

– Paiê, ela não gosta de Natal! Por que você não gosta de Natal?
Afirmava e perguntava um confuso Davi, muito indignado por ter tomado conhecimento da existência de um ser que não compartilhava do mesmo prazer natalino que ele.
– Mas você não gosta meeesmo de Natal? Perguntava ele, desconfiado, como se tivesse acabado de me ver descer de uma nave espacial ali mesmo na mesa de jantar.

Convenhamos, o tal Papai Noel é uma figura muito assustadora para uma criança pequena. É só fazer um teste. Nem dói. Abaixe-se. Fique de joelhos, da altura de uma criança. Imagine agora que se aproxima de você um Papai Noel. O que é que você vai enxergar? As botas pretas, as calças vermelhas, um barrigão, se tiver sorte e pegar um bem-nutrido, pois, convenhamos, há uns magrelos de dar dó. Aquele monte de barba branca. Se ele for generoso e o cachê permitir, estenderá as mãos calçadas em luvas brancas e oferecerá balas. Você ouvirá, então, lá dentro de si mesmo, por mais tentadoras que sejam as balas, a voz de mamãe dizendo:
– Nunca aceite balas de estranhos! Não pegue nada de gente que você não conhece!
Você olha para o cara meio desconfiado e percebe que ele tem um saco... de tecido, ou nas costas, ou próximo de onde estiver. Isso só vai servir para piorar a sua avaliação, porque vai trazer à sua lembrança uma figura que povoa seus pesadelos, o tal do Velho do Saco, aquele que leva criancinhas, sabe Deus para onde.
Agora, ainda querem me convencer que o tal do Papai Noel é um cara do bem?

E havia mais um detalhe: todo ano lá vinha o bom velhinho para levar minhas chupetas.
Vejam só: Chupeta em inglês chama-se “pacifier”. Traduzindo grosseiramente, “pacificador”.
Então, nossa querida mãe decide que devemos ser criaturas pacíficas. E nos apresenta a tal da chupeta. Chega, às vezes, até mesmo a passar um açucarzinho no bico para que fiquemos doces e pacíficos. Mas na hora que decidem que chega, resolvem nos tomar aquilo que nos deram.
E o pior que quem vai levar a nossa segurança embora não é ninguém mais ninguém menos que o tal do Velho do Saco. Não é enlouquecedor?

Durante anos foi travada lá em casa a batalha do “deixa de chupar chupeta”.
Muitos foram os argumentos contra seu uso: “Você agora já está uma mocinha”, “Você já está na escola”, “O que seus amigos vão dizer?”, e assim por diante.
E também foi usada como moeda para troca por muitas coisas: “Se você der a chupeta para o Papai Noel, ele trará isso, aquilo, aquele outro”.
Era um cabo-de-guerra.
Não lembro quando nem como, mas um dia eles venceram. A chupeta desapareceu definitivamente da minha vida. Vai ver que foi aí que comecei a ser gente grande.

As cascas de ferida são outro mistério. Aquelas nos joelhos principalmente têm todas a cara da infância. E daquelas infâncias bem-aproveitadas, nas quais se subia em árvores e se esfolavam os joelhos, andava de bicicleta, caía uns tombos, esfolava os joelhos, brincava de pique e esconde-esconde, corria, caía, esfolava os joelhos...
Andava, virava, mexia, lá estava ele, o joelho, ensangüentado sendo limpo pela mãe com água oxigenada e mercúrio cromo, enquanto eu, entre soluços, tentava explicar qual era a arte da vez.
O machucado começava a se cicatrizar e a casca ia se formando, umas maiores, outras menores. Umas repuxavam tanto e a vontade de se ver livre logo daquilo era insuportável e a tentação era tão grande que... um puxãozinho de leve, só um...e lá estava o machucado sangrando de novo.
À medida que fui me tornado adulta, equilibrando-me melhor nos meus passos, deixei de cair e de esfolar os joelhos...

Hoje em dia as crianças são adultos em miniatura. Basta olhar para as meninas de sete, oito anos. Batom, unhas pintadas e, pasmem, saltos altos.
Mussolini, Hitler ou Stalin teriam orgulho das regras da minha mãe. Salto alto? Só depois dos quinze anos. Ordens dadas, ordens obedecidas.

Na minha festa de aniversário de treze anos, duas de minhas amigas chegaram usando saltos altos. Isso é modo de dizer. Nos anos setenta havia só um modelo de sapato para “meninas-moças”. Era vendido numa loja chamada Cinderela, branco com um laço em cima e salto de cerca de dois centímetros.
Como só existia esse modelo, as duas chegaram juntas, usando sapatos iguais. Mas, para nós, as sem salto foi um OOOHH!!
Minha mãe, de imediato, taxou-as de ridículas afirmando que pareciam a Minnie e a Margarida.
Nós não estávamos nem um pouco preocupadas com a opinião dela. Estávamos morrendo de inveja, louquinhas para ser ridículas também.
No decorrer da festa, que era ao ar livre, as sem salto corriam, brincavam... Sim, naquela época adolescentes sadias brincavam, enquanto Minnie e Margarida só observavam, pois não podiam enfiar seus sapatinhos de salto na grama para não sujar.
Com certeza nessa hora foram elas que ficaram com invejam de nós.
Revirando esse baú de memórias, eu revejo esse momento como um filme. Um bando de meninas de treze anos correndo despreocupadas pelo gramado, enquanto duas outras em seus sapatos de salto só observam...
Elas têm vontade de entrar na brincadeira com as amigas, mas não podem. Não conseguem correr, pois irão sujar seus sapatinhos novos de Cinderela.
Talvez ainda não estivessem totalmente prontas para adentrarem no mundo das moças, quem sabe? Mas agora já deram um primeiro passo.

Existem mudanças que são inevitáveis.
Não é questão de querer ou não querer. A natureza simplesmente se encarrega delas. Enquanto muitas das minhas amigas se preocupavam por ainda não terem menstruado aos quinze anos, eu já era uma veterana nessa idade. O que não foi vantagem alguma, muito pelo contrário. Sempre tive muita cólica, um fluxo intenso, era muito infantil, estava muito mais interessada em brincar, correr pela rua. O absorvente nunca parava no lugar...
Não, criaturas, naquele tempo, que nem era idade das pedras, não haviam inventado ainda o absorvente aderente à calcinha nem o com abas. O que se usava era um aparato obsoleto, uma espécie de elástico que engatava o absorvente nele, que não servia para nada, pois o absorvente saía do lugar, vazava, era uma baixaria...

O meu corpo foi se tornando adulto, e com o passar dos tempos eu segui a sua caminhada.
Quando fiz quatorze anos, minha avó, contrariando os princípios fascistas da minha mãe, presenteou-me com os sonhados sapatos de salto. E conseguiu a proeza de encontrar um modelo completamente diferente do padrão da época.
Pode ser que até como todo adolescente eu nem tenha gostado tanto assim, pois queria ser exatamente igual aos demais. Mas de qualquer forma eu tinha ali, ao alcance das minhas mãos, o meu passaporte para o mundo dos adultos.

Naquele ano, no meu aniversário, já não teve mais correria no quintal.
Agora todas éramos Minnies e Margaridas. A festa até deve ter sido mais aborrecida, mas com certeza nós não demos tanta importância para isso.
Nossos olhos começavam a brilhar pelo Mickey e Pato Donald.
Estávamos deixando nossa infância para trás.

22 de novembro de 2008

Esse conto foi publicado no livro Travessia com o nome “Correndo de Salto Alto”

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Ora, pipocas...






Na rua o calor era dantesco, enquanto ali, no interior da loja, alguém havia errado a mão na hora de regular o ar-condicionado.
Ao abrir a porta para entrar, o cliente era saudado por uma lufada de vento polar. De qualquer forma as pessoas preferiam permanecer no polo esperando para serem atendidas do que enfrentar o que quer que fosse lá fora, naquele calor infernal.

Encostado na coluna, ele enfiava a mão no cartucho de papel parado, retirava alguns grãos de pipoca e, com um olhar bem distante (decerto vislumbrava ao longe seu iglu, doce iglu), ia mastigando vagarosamente. Nem bem acabava aquele bocado, a mão já estava de novo dentro do saco em busca de uma nova porção, num gesto mecânico e repetitivo.
A mulher que o acompanhava estava grávida e encontrava-se parada um pouco a sua frente. Usava um vestido de malha justo, que marcava bem sua enorme barriga saliente e seu umbigo saltado. A filha deles, de cerca de sete anos, corria para cá e para lá impaciente com a demora.

“Idosos, gestantes, lactentes, mulheres com crianças pequenas e pessoas com necessidades especiais terão preferência no atendimento”, dizia o cartaz. Mas todos os atendentes já estavam ocupados. Com certeza eles seriam os próximos.

A menina, entre uma corrida e outra, vinha para perto dos pais, servia-se de um punhado de pipocas e continuava a correr desatinadamente, derrubando um tanto delas pelo chão de granito da assistência técnica de telefones celulares.

A moça, sem tem nada o que fazer, a não ser esperar em pé naquela fila, distraidamente, começou imitar o marido e serviu-se de um grão de pipocas.
Mais outro.
Certamente movida pelo tédio, sem uma palavra apoderou-se do cartucho, tirando-o das mãos do marido.

A fila não andava.

Ela delicadamente comeu um grão de pipoca de cada vez.


A barriga marcada pelo vestido de malha era descomunal. Era ela que estava muito grávida ou era o vestido que dava aquele efeito de enormidade?

Um desajeitado servente veio repor o galão de água. Não foi feliz ao tentar encaixá-lo em seu suporte, molhando uma boa parte da loja e desperdiçando o precioso líquido. Sem perceber o seu erro, foi embora, dando sua missão como cumprida.

A barriga... a barriga naquele vestido de malha era algo que impressionava. Talvez nem fosse ela por si só, mas o umbigo saltado, apontando para fora.
Ou os dois...
Ela continuava comendo pipocas, um grão de cada vez.


Um grão.


Um grão a mais...


O derradeiro grão foi que causou o pandemônio.
A menina parou de correr estarrecida. O pai voltou de supetão da viagem que estivera fazendo.
Tal qual uma bexiga em festa de criança, o barrigão explodiu, jorrando água por todo lado.
Água essa que veio juntar-se àquela derramada pelo galão, molhando praticamente todo o chão de granito da assistência técnica de telefones celulares.

Uma gravação repetia sem parar: “Celular fora da área de serviço ou desligado.” Os aparelhos que ali se encontravam, por não funcionarem a contento, entraram em curto e deixaram de funcionar definitivamente.

Janeiro de 2008

- Hila Leslie?

Pergunto ao mordomo.
– Milady assiste à partida de cricket, responde ele.
Olho através da janela e a vejo. Sentada à sombra do caramanchão de glicínias, vestido de renda branco, colar de pérolas, pernas cruzadas, deixando entrever os tornozelos com suas meias de seda branca... Sorri misteriosa quando leva a xícara aos lábios, bebericando seu chá.
– Sinto muito, milorde, não pode se aproximar dela.
– Por que não?, pergunto.
– Porque milady existe tão-somente na minha imaginação.





12 de abril de 2009














domingo, 22 de novembro de 2009

Minha Vida de cão






Meu nome é Tobias, tenho quatro meses e sou um cãozinho. Não sou igual à maioria dos outros cachorros. Eu sou especial, sou da raça da moda. Todos me querem e pagam muito caro para poderem me levar para casa.

Eu moro num apartamento. Tenho muito mais do que preciso. Uma cama quentinha, ração balanceada na hora certa, um guarda-roupa completo para eu não sentir frio. Tenho até mesmo uma camisa de futebol do time preferido do meu dono e acreditem: uma capa de chuva!

A cada duas semanas sou levado ao pet shop, onde sou banhado, tosado e perfumado. Meus pelos ficam macios como veludo.
As crianças brincam comigo. Quando saio à rua, todos me param e mexem comigo. Os adultos me afagam e dizem que sou uma gracinha.

*******
O tempo passou tanto para mim quanto para a família que pagou muito caro a fim de me levar para a sua casa. Já não sou mais um filhote engraçadinho. A minha raça também já saiu de moda. Foi substituída por outra... Coisas de marketing.

Envelheci, pois é a ordem natural da vida. Preciso de maiores cuidados, de mais atenção. A empregada, que ultimamente estava me levando para passear, já tem muito serviço para fazer. Os adultos, cheios de responsabilidades, estão sempre muito ocupados fazendo contas e pensando no dinheiro que têm de trazer para casa.
As crianças cresceram, têm o seu tempo todo tomado, e eu perdi a graça.

Tentava ainda recebê-los abanando o rabo quando chegavam, e me diziam:
– Agora não!
– Não vê como estou ocupado?
– Sai para lá, babão!
– Esse cachorro está ficando burro!

Aos poucos fui sendo esquecido, assim como aquele brinquedo velho com que as crianças não brincam mais.
*******
Meu nome é Tobias. Ainda sou um cão de raça, mas hoje ninguém mais me quer. Moro por aí. Durmo encolhido num cantinho qualquer. Quando chove, se não encontro um lugar onde me abrigar, fico todo encharcado. Os meus pelos são emaranhados, ásperos e estou sempre imundo. Como quando encontro algum resto ou quando uma alma caridosa me joga algumas migalhas.
Nenhuma criança brinca comigo, e os adultos, ao passarem por mim, olham-me com desprezo, torcem o nariz e me enxotam dizendo:
– Sai para lá, cão sarnento!
– Como é fedido!
– Que imundície!
E seguem seus caminhos, cheios de seu egoísmo e vaidade.

E eu?

Não me abandone...
Eu sinto a sua falta!


11 de maio de 2000

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Não ser




Ela suspirou. Rolou na cama. Cobriu a cabeça com o travesseiro. Depois de algum tempo, abriu um olho e espiou para ver se existia vida para além da sua cama.

Bocejando, com muita preguiça, levantou-se.
Pensou:
– Hoje não vou fazer nada, absolutamente nada.
Onde está escrito... qual é a lei ou decreto que obriga o ser humano a trabalhar? A fazer o que quer que seja? A ser produtivo, útil?

Esfregou os olhos.
– Ah! Tem alguma coisa a ver com a Bíblia, não tem? Só porque a tal da Eva comeu uma maçã todo mundo está pagando o pato. Só podia ser coisa de religião...

Mas hoje ela estava pouco se lixando para a Eva. Não queria saber dela nem de ninguém mais. E de nada também. Dirigiu-se até a sala, desligou o telefone e se jogou no sofá. Lá permaneceu, olhando para o teto.
Ué?! Não fazem meditação sentados, naquela posição desconfortável, pernas cruzadas? Ela acabara de descobrir uma posição fantástica! Estava meditando.
Cochilou.

Quando acordou, sabe-se lá que horas eram. Também pouco importava, não iria fazer nada mesmo, e fazer nada significava também não olhar para o relógio.
Mas seu estômago não pensava assim e ela sentiu uma espécie de fome.

Balançou as pernas. Primeiro a esquerda, depois a direita para fora do sofá. Tateando com os pés conseguiu encontrar suas pantufas. Calçou um pé e depois o outro ainda deitada. Contrariando todas as recomendações fisioterapêuticas, levantou-se toda desconjuntada.

Dirigiu-se para a cozinha e abriu a geladeira.
Ops! Apocalipse now!
O fim do mundo já havia chegado.
As opções eram... quase nenhuma, digamos assim. E sua vontade de fazer o que quer que fosse para comer era nenhuma também.
Pedir um delivery? Nem pensar, muito trabalho. Era dia de não fazer nada, e falar ao telefone demandava esforço.

– Um copo de leite! Excelente escolha. Uma maçã.
Vai ver foi esse o problema da tal Eva. Geladeira vazia...
And that's all, folks!

Depois desta lauta refeição, decidiu mudar de aposento e voltou ao quarto, direto para a cama. Enrolou-se em suas cobertas, apanhou um livro na mesa de cabeceira. Ler não era muito trabalhoso, poderia fazê-lo.
Viajou mundos, conheceu pessoas, sentiu o calor do verão, o perfume das flores naquelas folhas de papel.
As horas se passaram sem que ela percebesse. Só se deu conta do tempo quando o estômago, sempre ele, acendeu o seu sinal:
– Fome! Fome!

Nova incursão à geladeira, na esperança de que alguma coisa houvesse mudado. Sabe-se lá, não existe a teoria da geração espontânea?
– Vai que alguma coisa tenha se criado lá dentro nessa faixa de tempo.

Qual o quê.
O interior da geladeira havia sido atingido pela bomba atômica. Era o Day after.
Decidiu variar o cardápio anterior. Em vez de um copo de leite e uma maçã, seria uma maçã e um copo de leite. Escolha feita, voltou para o sofá.
Do sofá para a cama.
Da cama para o sofá.

Usava seu pijama xadrez cor-de-rosa de flanela e as pantufas do Garfield.
Tomou um banho demorado e trocou um pijama por outro.
Esse dia de absoluta vagabundagem ela costumava chamar de “dia de arrastar o pijama”.
Se lhe perguntassem “Ser ou não ser? Eis a questão!”, ela responderia:
– Num dia de arrastar o pijama? Definitivamente, não ser!

14 de janeiro de 2007



quarta-feira, 18 de novembro de 2009

www.match.com




Ela olhou para os lados a fim de ver se ninguém estava olhando, depois percebeu que não tinha motivos para tomar essa precaução já que morava sozinha. Então, vagarosamente digitou: www.match.com.
Sentia-se uma perfeita imbecil entrando num site de relacionamentos, pois ainda era do tempo em que pessoas se conheciam quando eram apresentadas umas às outras. Todo seu complexo de colégio de freiras veio à tona quando se deparou com a frase: “mulher procura homem”.
– Que baixaria... Mas, já que abri a página, que seja... vamos ver que bicho vai dar.

Idade...
– E agora?
– Não sou atriz de novela cheia da grana para querer um garotão de vinte anos.
– De 45 a 55, vai lá.
Clique.
Quer fazer cadastro?
– Eu? Nem pensar!
Só visitando.
Clique.
Agora vai.

As fotos dos candidatos começaram a aparecer.
– O que é isso?
– Terrorista?
– Assassino?
– Serial killer?
– Será que não estou na página da Interpol?

– Esse sujeito tem a petulância de dizer que tem cinqüenta anos? Detonado desse jeito?
E desfilavam fotos e mais fotos, uma pior que a outra. Nem de mandar uma foto melhorzinha, mais bem produzida eram capazes. Fotos nas quais aparece a sala de jantar com a TV ligada no fundo, um horror!

E as descrições então? Eram todos atléticos, amantes de esportes e vida ao ar livre. Nenhum deles foi honesto o suficiente para se descrever como gordo e barrigudo.
Como alguém pode ser atlético, esportista com aqueles corpos? A não ser que tomar cerveja seja considerado esporte.
E um detalhe, nenhum dos de 55 anos queria uma mulher de 50. Queriam mulheres de trinta e cinco, quarenta anos, também atléticas e amantes do ar livre.

– O que exatamente quer dizer isso? Por acaso o ar não é livre? Estamos tendo que pagar pedágio por ele? Ou... saquei, é código, quer dizer, sacanagem ao ar livre.
Pode ser interessante, desde que não esteja frio, não tenha insetos, não esteja chovendo, não tenha areia... Sabe o que mais? Natureza? Estou fora!

Ela pensou se ao menos teria alguma chance de fazer seu anúncio.
“Gorda, preguiçosa, detesta fazer exercícios, adora comer, ficar em casa de pijama, procura um gostosão preguiçoso que goste de cozinhar...”
Sem chance.

Desligou o computador.
Ligou a TV. Estava passando um filme.
– Ora, vejam só, puseram anúncio na internet para a mocinha do filme.
– Viu como isso é uma furada? O primeiro cara que ela vai encontrar é seu pai.
– Olha, vejam só um encontro com cachorros...
Apesar de ser um filme, encontrar pessoas no parque dos cães não é uma idéia de todo desprezível. Pelo menos é gente de carne e ossos, muito melhor do que os bandidos virtuais.
– Porém, não vou nem me dar ao trabalho de pegar um cachorro emprestado com alguma amiga. Se fosse um de pelúcia até poderia ser, mas de verdade está fora de cogitação, pois não sou chegada a bichos. Mas, enfim, vou lá como quem não quer nada.

Dois bulldogs com cara de poucos amigos...
Um lhasa histérico...
Um pitbull cheio de energia que corria atrás de uma bola incessantemente...
Um lulu-da-pomerânia que pensava ter o rei na barriga...
Um casal de humanos dando uns malhos...
Um gay lendo... “que desperdício, ele não é de se jogar fora!”
Mulheres e mais mulheres fofocando...
Um casal gay tomando sol enquanto seu chiuaua provocava um labrador...

Ela não sabia o que era pior, se se sentia mais idiota agora ali, no meio daquela cachorrada toda, sem ter nenhum cachorro, tentando recriar o clima de um filme... ou quando entrara no site.

– Definitivamente, isso não serve para mim. Vou voltar para a minha toca.
Fez meia-volta.
E pisou num cocô de cachorro fresquinho que o dono não tivera tempo de recolher.

– Merda!

14 de janeiro de 2007

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Gato Quilteiro e a Páscoa




Minha cara dona,

Confesso que está muito além da minha brilhante capacidade de entendimento o motivo de tanto empenho na confecção de trabalhos com um tema tão, tão... digamos assim... sem graça quanto esse tal de Coelho da Páscoa.

Quem é que vai levar a sério um sujeito que foi enganado por uma tartaruga e que passa o dia correndo a esmo com um relógio gigante nas mãos gritando que é tarde, sem ao menos dizer as horas?
Como pode ser símbolo de alguma coisa um ser que mora numa toca embaixo da terra, tem vida sexual ativa... que, convenhamos, é politicamente incorreta para os dias atuais, pois o que ele pretende é acabar superpovoando o planeta?
Vive roendo aquelas cenouras de boca aberta e ainda por cima não respeita os idosos com aquele linguajar chulo: “O que é que há, velhinho?”

Onde já se viu tamanha falta de respeito?! Os mais velhos precisam ser reverenciados. Existe imagem mais singela que uma vovozinha sentada em sua cadeira de balanço coberta com uma aconchegante manta de patchwork? Claro que, para tornar o quadro muito mais bonito e terno, não poderia faltar o personagem mais importante, um gato, sem o qual o quadro não passaria apenas da figura de uma velha caduca babando na cadeira.

Definitivamente, coelhos não devem ser levados a sério.
Nós, felinos, fomos abençoados com nossa beleza, nossa graça natural, nossa modéstia. Somos tão cheios de predicados, de dons que somos os “musos” inspiradores de todas as artes.
De histórias de amor, afinal quem não conhece Romiau e Julieta e O Amante de Lady Catterly? Tem o Gato de Botas, aquelas gatinhas frescas, as Aristogatas, o gato Félix, o Tom, o gato Cheshire... ah! eu ia adorar ser como ele! Já pensou no dia em que vem aquele bando de mulheres aqui quiltar e, enquanto umas começam a querer me pegar “gatinho, gatinho”, pensam que sou cachorro e que é só estender a mão que já vou abanando o rabo, e outras cheias de frescura se dizem alérgicas a pêlos de gatos, mas não param de fumar? A ignorância do ser humano é surpreendente. Elas andam por aí enfeitadas feito pavão, cheias de jóias, e não sabem que pêlo de gato não dá alergia a ninguém! É a saliva que fica em nossos pêlos quando nos lambemos que causa alergia... sem falar no cigarro.
Mas, se eu fosse como o Cheshire, poderia aparecer só meu sorriso no meio da colcha daquela antipática que vive apertando minhas bochechas. Ou então meu rabo em meio à cesta de costura Louis Vuitton daquela chata que vive soltando fumaça pelas ventas... Já que não posso aparecer e desaparecer, quem sabe uma cuspidinha...
E tem o Garfield. É o meu herói! Eu estava pensando em convidá-lo a passar uns dias aqui no Brasil. Teríamos muitas coisas para conversar.
Pensando bem, não é uma boa idéia. Meu cesto de retalhos está no tamanho certo para mim. Não quero dividi-lo com ninguém, muito menos com um gordo como ele.

Sinceramente, eu quero entender por que despender tanto tempo... Faz horas que você está aí nesse mede, passa a régua, corta, costura, passa a régua, corta de novo, costura, desenha, recorta, cola, aplica...
Está toda empenhada em meio a esse monte de tecidos laranja, verde, fazendo esses trabalhos para a Páscoa e usando a cara desse coelho babaca.
Além do mais, convenhamos... que aberração da natureza é essa um coelho ovíparo? Você já viu coelho botar ovo? Jacaré bota ovo, tartaruga bota ovo, mas coelho...
Um absurdo! Só mesmo um bicho puxa-saco para se sujeitar a fazer um papel ridículo desses.

Eu, por vezes, estive fazendo minha meditação transcendental em cima do teu mat, e você pensa que eu só durmo, não é mesmo? Eu já ouvi você dizer inúmeras vezes que nós, gatos, somos uma rica fonte de inspiração para inúmeros projetos. Você já viu a e-nor-mi-da-de de tecidos estampados com felinos ma-ra-vi-lho-sos que se encontram à disposição de quem quer gastar alguns dólares na internet?
Então, mulher, larga mão, esquece o tal do Coelho da Páscoa! Coelho já era.
A moda agora é Gato da Páscoa.
Você está me olhando com um olhar esquisito.
O meu instinto de preservação está tocando o sinal de alerta nas nove vidas.
Sete?
Que seja...
Ops... Em quem você está pensando que vai pôr essas orelhas?
Ninho?
Ovos?
Nem pensar...
Miau!!!

Gato (da Páscoa) Quilteiro


25 de janeiro de 2009

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Dúvida Cruel


Uma propaganda só é eficiente quando nos lembramos do produto anunciado por ela.


De que adianta saber cantar o jingle:

“Já é hora de dormir,
Não espere mamãe mandar...
Um bom sono pra você,
E um alegre despertar!”

se não conseguimos lembrar que o personagem da campanha era um bonequinho usando um camisolão e gorro de dormir, com um castiçal na mão?
Mas o pior mesmo é lembrar-se de tudo isso e se esquecer do principal. O que é mesmo que esse bonequinho queria nos vender? Velas? Colchões? Penicos? Comprimidos para dormir?
Para quem a esclerose chegou valendo, ele vendia os cobertores Parahyba.

Incontestável é a eficácia da propaganda na qual um moleque entra no banheiro e, passado algum tempo, grita:
– Alfredo, o Neve!
E lá vem o mordomo, o eficiente Alfredo, com o papel higiênico Neve na bandeja de prata para o cagão imprevidente.

Mas a maioria dos míseros mortais não tem nenhum Alfredo, então devemos nós mesmos tomar as devidas providências relacionadas aos Neves nossos de cada dia. Que, diga-se de passagem, não precisam ser necessariamente Neves.

Eu, pessoalmente, não sou fiel a marcas. Procuro pelo melhor preço, desde que não seja lixa, pois afinal não me achei, me achei... bem, não me achei no lixo.
Papel higiênico para mim tem que ser macio, de folha dupla e com um preço razoável.
O governo fala o que quer, quando quer. Economia estável, não tem inflação, está tudo muito bom, está tudo muito bem. Porém há algo diferente no reino da Dinamarca, e está lá, estampado na embalagem do papel higiênico. Subiu o preço. Quer saber como está o mercado financeiro do país? Não precisa ler ou ouvir as entrevistas incompreensíveis dos analistas. É só ir ao supermercado e olhar o preço do papel higiênico. Subiu? Tá dando merda.

Eu considero o papel higiênico gênero de primeiríssima necessidade. De que adianta ter uma cesta básica com arroz e feijão? O governo está pensando só na entrada... E a saída?
Porém, nas últimas vezes em que fui ao supermercado, voltei cabisbaixa, meditabunda, injuriada, indignada. Como é possível aplicar um golpe baixo desses na calada da noite? Isso não é só um ataque ao bolso do cidadão brasileiro. É um ataque covarde e pelas costas.

Socorro! Aumentou o preço do papel higiênico!

Eu já desisti de tentar entender qual a razão que me faz comprar pacotes com oito rolos de papel, já que moro só. Vai ver que meu subconsciente sabe que o fim do mundo está à espreita na próxima esquina, ou que os bolivianos ou venezuelanos irão explodir um rojão qualquer sobre nossas cabeças, causando uma guerra, ou uma catástrofe qualquer. Imagino que deva ser uma sensação horrível ser acometido por uma diarréia num horário impróprio e ter que ficar cagado sem ter um mísero pedaço do precioso papel para dar conta do recado.

O papel higiênico subiu. O que fazer? Não dá para viver sem ele. Qual é a opção?
No mercado, na respectiva seção, encontro outra cliente com o mesmo ar apatetado que eu.
Se estivéssemos na seção de sabão em pó, seria fácil puxar conversa:
– Qual é marca que rende mais?
– O teu lava tão branco quanto meu?
– E as roupas coloridas, ficam mais brilhantes?
– E aquele cheirinho de limpeza?

Agora, qual é o diálogo inteligente possível de ser mantido diante de uma gôndola de papel higiênico?
– Você caga muito ou pouco?
– Esse perfumado, disfarça o cheio de bosta?

– Você sabe se o colorido solta tinta?

Convenhamos, existem tantas opções para um mesmo fim que, na maioria das vezes, ao invés de ajudar, só servem para confundir.

Vejamos...
Folhas simples versus folhas duplas
Folhas simples, a meu ver, servem para pessoas jeitosas, pois aquelas sem paciência, que fazem tudo estabanadamente, com certeza farão com que o papel fure no meio e, quando perceberem, estarão com o dedo sujo de merda. Não dá para encarar.

Em alguns deles a maior qualidade é sua maciez. Tem até um com toque de pluma. Toque de pluma? Deve fazer cócegas...

Trinta metros, cinqüenta metros, sessenta metros. Rende mais. Rende menos. Comparados com que especificamente? Com quem caga mais? Rende menos. E se tiver intestino preso? Rende mais... Muito confuso...

Com perfume ou sem perfume?
Se optar por perfume, entre uma das variedades, eis que encontro: hortênsia. Ops! E desde quando hortênsia tem cheiro de alguma coisa? Mas quem sou eu para discutir?
Posso ser uma completa ignorante com relação a perfumes ideais para papéis higiênicos.
Taí uma flor que conheço: jasmim. Espere um pouco... Qual é a função de um papel higiênico perfumado fora deixar o banheiro com cheirinho?
Ao que me consta, seres humanos ainda não adquiriram hábitos caninos de cheirarem uns aos outros ao se encontrarem.

Existem também aqueles com coelhinhos... Qual o porquê da existência desses coelhos num papel que tem um fim tão inusitado? Por que não pôr também gatos, cachorros, passarinhos? Cada coisa... O mais esquisito dizia CUBO. Virei o rolo para todos os lados e não vi cubo algum. Tinha exatamente o mesmo formato cilíndrico de todos os outros. Uma sigla. É isso! CUBO.
Cu dos Bobos? Será isso? Melhor deixar para lá.

Enquanto me debatia e divagava envolta em dúvidas cruéis, a minha parceira já havia decidido e saía feliz abraçada com seu fardinho, não sem antes me explicar a razão da sua escolha.
– Oh, céus! E agora?, perguntei para mim mesma.
Qual a forma ideal para me despedir da moça que acabara de conhecer e conviver por alguns minutos diante da gôndola de papel higiênico?
– Tchau, prazer em conhecê-la, boa cagada!
– Tchau, eu e meu cu agradecemos pela dica!
Sem saber o que dizer, apenas sorri e continuei no mesmo local, assolada pelas dúvidas
.

1o de agosto de 2008

sábado, 21 de março de 2009

Chimarrão e Churrasco






Senhoras e senhores,




é com grande satisfação que nesta data lhes apresento ao vivo e a cores... Ops! Ficou mal... a fotos e a cores (melhor assim?) dois ilustres personagens,
os meus amigos peludos:

CHIMARRÃO e CHURRASCO!

Ah! É mesmo?
Eu escrevi que Chimarrão era um gato persa?
Tem certeza?
Mesmo?
Sabe o que aconteceu? Devido a esta onda de calor insuportável que assola o país, ele decidiu mudar o visual e aderiu a um corte fashion nos pêlos e também fez umas luzes escuras. Para ficar melhor na foto, está usando um par de lentes de contato azuis.
Evidentemente ele não ia querer ficar por baixo diante dos meus olhos naturalmente azuis. Vamos ser honestos, não ficou de todo ruim.

Ih! Eu também escrevi que o Churrasco era preto?
Ufa! Pelo menos desse a raça continua a mesma.
Era verão quando eu o conheci, ele estava bronzeado. Agora mandou a foto depois que fez clareamento de pele com o mesmo médico do Michael Jackson.

Querem saber mais? Já que vocês estão pressionando, agora vou entregar, mesmo.
O Churrasco não passa de uma alcatra, e o Chimarrão de uma chimarrita.

O que mais vocês podiam esperar de um felino metido a escritor?
Gato quando resolve escrever é assim mesmo, não dá para confiar em tudo que diz, pois da sua imaginação podem sair muito mais coisas do que simplesmente coelhos de uma cartola. Ela é como uma caixinha mágica na qual o mundo pode ser exatamente aquele que idealizamos. Um mundo de paz, de amor e sem miséria, violência ou fome.

Todos temos imaginação, é só saber usá-la.


4 de março de 2009

Botão no Palheiro

Churrasco é um cachorro dócil e carente, pois está sempre querendo chamar a atenção para si.
Dizer que um labrador é dócil já é uma redundância, mas vá lá.
Enquanto Chimarrão não está nem aí, com sua autoestima felina sempre bem-resolvida, Churrasco, quando pode, e isso significa todo o tempo, está com aquele olhar canino pidão:
“me ame, me ame, me ame...”
Como se não bastasse, traz um galhinho, uma folha, um pedacinho de madeira, qualquer coisa que encontrar no jardim para provar que está ali para o que der e vier.

Elas cortam tecidos, costuram, recortam, colam, bordam. Criam colchas, painéis, num exercício diário de paciência e dedicação. Churrasco é seu fiscal. Mesmo que a maior parte do tempo passe deitado fingindo-se de morto, faz-se presente.
Já tiraram um bolo de linha de sua boca, encontraram pedaços de tecidos babados no meio do jardim e tiveram que disputar com ele um projeto recém-desenhado para evitar que fosse engolido antes mesmo de se ter uma simples cópia. E, quando a galinha que haviam acabado de aplicar desapareceu do mural, a resposta para o sumiço estava na ponta da língua:
– CHURRAAASSSCOOOO!!!!

Ela gostava muito daquele vestido, embora ele não tivesse nada de especial. Havia trazido de Nova Iorque há mais de dez anos e já devia tê-lo aposentado há muito tempo. Mas ele era leve, fresco, e ela tinha a impressão de não estar usando nada, ideal para aquele calor desproporcional. Gostava da estampa de flores miúdas e, acima de tudo, dos vinte e cinco pequenos botões que fechavam a frente do vestido.
Recentemente ela havia reforçado sua costura, apesar de pregar botões ser uma coisa que detestava fazer. Porém era melhor prevenir, não queria arriscar perder um deles.

Numa tarde especialmente quente foi trabalhar com seu vestido florido, mas, ao chegar em casa, na hora de despi-lo, deu pela falta de um dos botões.
“E eu repreguei todos, será que deixei passar um?”
“Com certeza, senão isso não teria acontecido!”
Onde encontrar, passados dez anos, um botão para um vestido comprado em Nova Iorque?
Trocar todos os outros vinte e quatro? Jamais!
Procurá-lo? Não saberia nem por onde começar, seria o mesmo que procurar uma agulha no palheiro.

Estavam trabalhando e, como de costume, Churrasco se fazia presente.
A amiga perguntou:
– Churrasco, o que você está comendo?
Abriu-lhe a bocarra e vasculhou em meio à baba.
– O que esse cachorro achou para mascar desta vez?
Como o ruído de milho de pipoca sendo mordido continuou, a amiga insistiu.
Abriu a boca do cão uma vez mais e desta feita foi bem-sucedida.
– O que é isso? Não me diga que quebrou o dente?
Ela deixou seu trabalho e foi ver. Parecia um dente.
– O que foi que você aprontou desta vez, cachorro? perguntou afagando-lhe a cabeça.
Porém, quando a amiga virou o pequeno objeto para o lado contrário, ela reconheceu com grande tristeza duas listinhas verdes do que restou do seu botão.
Churrasco havia encontrado o botão no palheiro.

4 de março de 2009

terça-feira, 17 de março de 2009

Um Rei em seu Castelo



O gato chega. Chega de manso. Como só os gatos sabem chegar. Passos leves. Andar cadenciado, tão peculiar a sua espécie.
Pula na cama.
Eu finjo que ainda durmo. Estou com muita preguiça.

Hoje é sábado.
Domingo.
Feriado. Nem sei mais.
É um dia especial, dedicado a mim mesmo.
Eu sou um rei e reinarei absoluto em meus domínios.
Então está proclamado que hoje eu não farei a barba, que comerei toda a gordura da picanha mais sangrenta e que beberei toda a cerveja que quiser.
No meu castelo os cinzeiros permanecerão sujos, os jornais esparramados por toda a parte, a toalha molhada vai ficar no chão, as roupas espalhadas. Com certeza terá creme dental caído na pia e eu não vou baixar o tampo do vaso sanitário.
Hoje eu não vou vestir o que me fica bem, aliás, vou jogar fora aquele pulôver horroroso que a sogra tricotou. Também não quero saber nada de massagens, óleos, beijinhos nos pés e preliminares. Se eu quiser, sexo será somente sexo por ele mesmo.

O relacionamento deu seu suspiro final. Vinha agonizando há meses. Cobranças. Bate-bocas inúteis. Implicâncias mútuas. Fim.

Hoje é um novo dia. Uma nova vida. Começar de novo. E para isso nada como um bom descanso para refazer as energias.
Sem gravata, sem decisões, sem telefone, sem engarrafamento no trânsito, sem laptop, sem relógio ou estresse.

O que realmente importa hoje é que quero permanecer na cama indefinidamente. Curtir a minha liberdade, o meu estar só. Fazer o que bem quiser, como e quando quiser. Quero respirar fundo, espreguiçar e continuar com preguiça. Mudar de posição, virar para o outro lado e continuar a dormir.
Estou naquele estado de sonolência que beira um mergulho no espaço infinito.

Mas ainda existe um resquício de alerta em minha consciência. E é esse pouco que falta que percebe os passos que caminham sobre o meu corpo.
Mesmo sobre duas camadas de acolchoados de penas, eu sei que ele está lá.
Se estiver deitado de barriga para cima, ele se deita sobre mim. Hoje resolveu fazer do meu corpo a sua passarela.
Minha mente, um pouco mais desperta, começa a dar sinais de vida imaginando se este ato seria proposital.

– Com absoluta certeza! é a resposta.
Pois quando quer, o gato salta sobre os obstáculos. Saltos perfeitos. Milimetricamente calculados, sem sequer um esbarrão que seja no objeto a ser evitado.

Sei o que ele quer. Levanto, então, os acolchoados. Ele observa atentamente. Enfia a cara. Cheira. Sabe que não está de acordo com os seus desejos. Sou obrigado a mudar de posição. Viro de barriga para cima, dobro as pernas, permanecendo com os joelhos flexionados.

Ele, satisfeito, aninha-se na tenda formada pelas minhas pernas e as cobertas.
– Como posso eu dormir nesta posição desconfortável? pergunto para mim mesmo.
Permaneço naquele estado de sonolência nem lá nem cá, enquanto ele dorme feliz e abrigado pelo tempo que lhe é suficiente.
Tendo sua necessidade de repouso satisfeita, sai de seu esconderijo, espreguiça-se cuidadosamente e recomeça sua passeata sobre mim.

– Gato, gato! Hoje é dia de descanso, digo-lhe. Deixe-me permanecer inerte um pouco mais. Mas meu poder de persuasão não surte o menor efeito. Resolvo então abrir os meus olhos e me deparo com o seu par de olhos olhando diretamente dentro dos meus.
– Auuu! faz ele, sem desviar olhar.
Ledo engano de quem pensa que os gatos dizem “Miau!”. Todos os gatos de minha vida sempre fizeram “Au!”.

– Au! para você também, respondo sem muito entusiasmo.

Sabedor de que suas intenções começaram a surtir efeito, ele começa outro ato: demonstração de afeto.

Inclina a cabeça e passa em meu rosto. Faz uma volta em torno de si mesmo e esfrega o outro lado da sua cara. Vai até os pés da cama. Deita-se lá e, sem perder o contato visual, diz:
– Au!
Levanta-se e volta a se esfregar em mim.

São seis horas da manhã de um dia que seria dedicado a nada fazer. Mas agora
já estou totalmente desperto. Não há mais sentido em permanecer na cama.
Listo mentalmente atividades aborrecidas, por tanto tempo adiadas, e penso em colocá-las em prática.
Sento na cama. Está um dia cinzento e frio, típico de inverno. Garoa fina.

Olho com pesar para o calor da minha cama e levanto de chofre.
Caminho em direção ao início de mais um dia.

O gato? O gato, depois que me viu em pé, foi para a frente do aquecedor, onde dormiu sem culpas durante quase o dia todo. Coisa que gatos sabem fazer como ninguém.

– Esse sim é um rei em seu castelo, pensei, olhando-o com um misto de admiração e inveja.


16 de junho 2000

domingo, 15 de março de 2009

Adão, o da Eva


A palavra paraíso, te lembra alguma coisa?

Um mundo perfeito, correto?
Então tá...

Porém tenho cá minhas dúvidas... Se era perfeito, por que Eva pôs tudo a perder?
Vamos partir do princípio: nós mulheres somos curiosas.

Mas só por isso?
Curiosidade?
Saber que gosto tinha uma maçã?
Duvido...

Será que não havia mais alguma coisinha por trás da curiosidade?
Algum desejo enrustido?
Alguma insatisfação feminina?

Vejamos...
Eram ela e o Adão. Numa nice!

Ela não tinha que lavar roupas, muito menos passar, engomar camisas. Não me faça rir. Sujou? Melhor dizendo, murchou? Joga fora. Pega uma folha nova. Um guarda-roupas com uma infinidade de opções.

– Que foi Eva? Por que essa cara?

– Não agüento mais andar sempre com a mesma folha de chuchu... Vamos ao shopping, quero uma folha nova.

Não precisavam ir ao supermercado nem fazer almoço ou jantar, por conseguinte não havia louça suja que precisasse ser lavada.
Bem, eu imagino que, já que era paraíso, a comida devia aparecer como num passe de mágica... uma espécie de delivery divino... melhor não entrar em muitos detalhes.
Não tinham filhos, muito menos parentes para lhes tirar o sossego e pedir dinheiro emprestado.
Não tinham prestações para pagar, a casa era própria, não precisavam se preocupar se o mês seria muito mais longo que seu o salário, nem se teve queda na bolsa, nem com a taxa de inflação.
Não faziam declaração de imposto de renda, não precisavam de plano de saúde nem plano funeral, não se preocupavam com balas perdidas nem com balas achadas.

Eva não tinha o menor receio de que Adão se atrasasse para vir comer por dois motivos. Primeiro porque não tinham relógio, e segundo porque ele não ia a lugar algum mesmo...
Fumar?
Adão não fumava, portanto aquela desculpa: "Querida, vou até a esquina comprar cigarros", e nunca mais voltar, estava fora de cogitação. Além do que ela nem tinha como reclamar que ao beijá-lo parecia estar beijando um cinzeiro.

A cervejinha após o expediente com os amigos e o futebol das quintas e sábados não rolavam. Cheiro de suor com cerveja também não.
Nem uma loira gostosona, nem feia, pelas imediações para ele disfarçadamente olhar com o rabo do olho, que desencadeasse uma crise de ciúmes.
Não tinham carro e tampouco moto para ele ficar alisando como se fosse outra mulher.

Para ele, Eva era perfeita. A mulher da sua vida. A tampa da sua panela. A mortadela do seu sanduíche. O feijão da sua marmita. Ele jamais iria compará-la com a sua mãe, portanto, sogra era uma preocupação que ela não tinha.
Era um tal de Eva para cá, Eva para lá...
– Eva, vamos ver o pôr do sol?
– Eva, vamos ver o nascer do sol?
– Veja, Eva, está chovendo...

Já pensou?
Só os dois no paraíso?
Ele e ela.
– Faz um cafuné, Eva, eu gosto tanto...
Vinte e quatro horas por dia...
– Eva, querida, onde você está?
Sete dias por semana...
– Beijinho, Eva, beijinho...
Meses...
– Benhê, vem dormir, vem, Eva, você sabe que não durmo sem você...
Anos...
Que tédio!
Esse Adão devia ser um chato de galocha.
– Cadê aquela macieira?
– Adãããooo! Vem ver a surpresa que eu trouxe para você!

14 de janeiro de 2007



sábado, 7 de março de 2009

Picada pela Tsé-Tsé


Tem coisa mais indecente do que sentir sono?

Aquele sono medonho, que você tem certeza absoluta que se piscar os olhos um pouco mais devagar eles se fecharão e você dormirá esteja onde estiver, em pé, ali mesmo, como um cavalo, uma égua, um jumento, uma vaca...

Estava dirigindo naquele estado desesperador. Uma temeridade, um atentado à segurança dos transeuntes e a sua própria. A cabeça não mais se firmava sobre o pescoço e percebia que, mais cedo ou mais tarde, ela rolaria para algum lugar dentro do carro; antes que isso acontecesse, resolveu parar.

O pouco do cérebro que ainda dava sinais de vida alertou que estava próxima a uma confeitaria que adorava, e foi para lá que se dirigiu, aos passos. Não, ela não estava a pé, então, quem sabe, ela se dirigiu aos rodados de um cágado de muletas.

Entrou no antro do pecado da gula. Uma profusão de aromas penetrou nas suas narinas, mas, ao contrário do que usualmente acontecia quando lá chegava, aqueles odores deliciosos não alteraram em quase nada suas papilas gustativas, que decerto já se encontravam em estado de inércia absoluta.

O salão da confeitaria é pequeno e ainda bem que àquela hora, por ser muito cedo para o lanche da tarde, encontrava-se absolutamente vazio. Caminhou até a mesa mais distante, encostada na parede, e lá desmoronou. A garçonete, atenciosa, veio atendê-la com as perguntas de praxe:

– Conhece nosso sistema?

(Sistema? Que sistema? Operacional? Windows? Vista? Linux? Ou seria sistema capitalista? Comunista? Do que ela está falado?)

Fez que sim com a cabeça mais para certificar-se de esta ainda se encontrava atrelada ao seu pescoço.

– A senhora vai servir-se do bufê ou prefere o serviço à la carte?

(Que vaca! Uma pergunta com duas alternativas de resposta... Não vai poder acenar com a cabeça novamente, vai ter que usar o último neurônio e fazer uma escolha rápida.)

– Bufê! Respondeu de pronto, antes que a fala fosse afetada.

– Chá ou café?

(Que saco! Escolher de novo?)

(Saco, igual a coador, coador igual a café... Cérebro, responda, câmbio... Café, preto, expresso! Duplo!)

(Urgh! Detestava, mas iria tomá-lo como remédio, e remédio é ruim mesmo. Que venha o expresso!)

– Aceita um suco natural? Temos de morango, uva, manga e maracujá!

(Agora a moça extrapolou. Quantas eram as opções de sucos? Só conseguira ouvir duas palavras: "suco e maracujá".)

(Ela está de brincadeira comigo, pensou. Quer que eu morra. Com o sono que estou, se tomar um suco de maracujá, entro em coma "sucólico" aqui mesmo. Se quer me pôr a nocaute, me dê suco de maracujá. E nem precisa ser na veia.)

Recusou com a cabeça. Ela, a cabeça, continuava no mesmo lugar. A garçonete, cada vez mais embaçada, também.

-–Posso mandar fritar os salgadinhos?

Fez que sim. E pensou, quando sair, apague as luzes, feche a porta e volte com os salgadinhos daqui a umas três ou quatro horas, está bem?

Finalmente só.

Ela e o balcão dos doces. E o cúmulo do absurdo era estar ali, na sua confeitaria preferida, rodeada por tentações, torta alemã, trufas de chocolate, tarteletes de vários sabores, docinhos miúdos e a única coisa em que pensava era na sua cama, em se deitar e dormir.

Lembrar da cama devolveu-lhe um mínimo de consciência. Imaginou como sairia dali para voltar para casa. Conseguiria chegar até o carro? Sobreviveria ao trânsito? Não sofreria nenhum acidente durante o percurso? Não seria atropelada, seu carro não seria abalroado por algum ônibus desgovernado ou trem descarrilado? Não seria encontrada por alguma bala perdida?

Oh! Céus!

Seu sistema operacional está lento. Obsoleto. Precisa um upgrade urgente. Prestes a cair. Lamento, senhora, o sistema está fora do ar. Pode retornar mais tarde? Era o que repetia a gravação dentro da sua cabeça.

Com toda a segurança podia afirmar que não havia bebido e muito menos ingerido, tomado ou cheirado qualquer outro tipo de substância com um efeito sonífero.

Fazia um esforço hercúleo para manter a consciência:

Será que ainda sei meu próprio nome?

Meu CPF? Meu RG?

Onde moro? Qual é meu telefone?

Melhor parar por aqui e não arriscar na complexidade das perguntas.

O salão continua vazio. Não entrou ninguém desde que chegara, afinal é segunda-feira, nenhum maluco vem fazer lanche numa segunda às 13h30min. Portanto ninguém irá reparar se eu recostar a cadeira na parede e tirar uma pestana, imaginou.

Ainda bem que tivera um vislumbre de inteligência e recusara o tal suco de maracujá, caso contrário não sairia dali mesmo nem por decreto e guinchada.

Esse sono desesperador tinha uma explicação bastante simples: passou a noite em claro.

Não, ela não era médica, que havia passado a noite numa sala de cirurgia salvando vidas, justificativa bastante nobre.

Tampouco uma doutora das leis, um verdadeiro paladino da Justiça que, na calada da noite, estudava processos para que, durante o dia, o mundo não se transformasse em caos.

Nem era uma cientista pesquisando algum assunto mirabolante, que mais tarde pudesse até mesmo revelar-e totalmente inútil, mas que soaria muito imponente quando ela afirmasse:

– Estou tãããooo cansada! Passei a noite pesquisando sobre a dilatação gravitacional do tempo.

E falaria umas besteiras sobre as diferenças dos nanossegundos da hora marcada por relógios atômicos colocados a bordo da Estação Espacial Internacional.

As pessoas não entenderiam absolutamente nada, fingiriam que sim, fariam alguns comentários sem sentido sobre o assunto, seriam da opinião de que ela era muito inteligente e teriam toda a empatia pelo seu estado de sonolência.

Também não era nenhuma criatura de vida desregrada que passava a madrugada de bar em bar, bebendo, jogando conversa fora e fumando. Aliás, das três coisas, beber, fumar e conversar, só era adepta da terceira.

Ela era simplesmente um ser que trocava o dia pela noite, muitas vezes vítima de sua própria indisciplina.

Acontece que desde sempre havia sido assim. Sempre, entenda-se, por desde o momento em que colocou os pés, corrija-se, entrou de cabeça, neste mundo.

A mãe repetia para quem quisesse ouvir que ela, recém-nascida, acordava todos os dias lá pelas dezoito horas e começava o berreiro... que durava até as seis horas da manhã do outro dia, quando dormia como um anjo até as dezoito horas. Hora de acordar e começar a berrar. Pontual como um relógio suíço.

Vai ver viera com algum defeito de fabricação no botão liga/desliga. Ou no timer. Quem podia saber? Não encontrava o balcão de reclamações. E mesmo se encontrasse pouco havia que pudesse ser feito, pois o prazo de validade estava vencido, sem falar que era uma mercadoria sem nota fiscal.

Com o advento da tecnologia, as tentações para um notívago aumentaram sobremaneira. E dentro da sua própria casa. Jogos eletrônicos, DVDs, TVs, e a bendita? Maldita? Internet.

Ela possuía sua rotina de trabalho. Digitava seus textos, fazia revisões.

Se fosse necessário, alguma pesquisa; era o início do caos.

Uma simples busca por um tema qualquer nunca resultava nada menos que cerca de cinco mil itens. Alguns, que não tinham nada a ver com o assunto inicial, eram logo descartados, outros, ao contrário, levavam-na adiante, indicando outro local mais interessante ainda e dando início a um intrincado labirinto. E aquele relógio do lado direito da tela não pára.

Correio eletrônico.

Mensagens.

Os amigos que moram no exterior.

Saudade.

MSN.

Os ruídos do mundo à noite pouco a pouco diminuem. Já não ouve o portão do condomínio abrindo e fechando. Todos os moradores já estão em seus respectivos apartamentos.

Lá pela uma hora um assovio e o barulho de algo como latas chacoalhado; é o horário em que passa o caminhão da coleta de lixo.

Os carros passam cada vez mais esporadicamente, e talvez a cada meia hora (nunca se dera ao trabalho de verificar a assiduidade) escuta o apito do vigilante noturno.

Quando percebe, voltam os ruídos dos ônibus, as sabiás cantam cada vez mais, aumenta a circulação dos carros, o portão se abre e fecha a cada morador que sai. Mais um dia começa. Uma vez mais ela passa a noite inteira acordada.

Dorme, então, cerca de duas ou três horas e segue a vida em frente, para ver se na noite seguinte consegue por milagre transformar-se num ser humano normal.

(Ah! Não! Uma súbita e incontrolável vontade de fazer xixi.)

(O que é isso? O ser humano dominado pelas necessidades mais primárias?)

Bom, pelo menos foi um motivo bastante convincente para despertá-la do estado de torpor em que se encontrava até então.

Precisava de um plano tático para chegar até o banheiro. Sim, plano, pois possivelmente a vontade já estivesse presente há algum tempo, mas, como ela estava como anestesiada, não tinha percebido. Porém nesse exato momento a coisa beira as raias do insuportável. A bexiga estava prestes e explodir e inundar tudo.

(Eu não sei nadar! Vou ter que chegar ao banheiro custe o que custar.)

Mirou bem a porta. Levantou num ímpeto, encheu os pulmões de ar e, mantendo o prumo, caminhou rapidamente para a salvação.

Os poucos passos que dera até o banheiro tiveram um efeito positivo em seu estado comatoso. Após eliminar o excesso de água que se encontrava no interior do seu corpo, pensou que talvez ali, naquele minúsculo banheiro, estivesse a solução para a picada da tsé-tsé.


Abriu a torneira e molhou os pulsos na água gelada.

Teve uma idéia melhor. Com as mãos em concha encheu-as de água e jogou no rosto. Repetiu o gesto espalhando líquido por todo o lado como um pato na lagoa.

Olhou-se no espelho, o rímel, que não era à prova d′água, tinha borrado, produzindo um efeito catastrófico...

– Que merda!

Mas aquela cara de vodu pelo menos fizera o efeito de dar uma espantada, mesmo que temporária, na tsé-tsé.

Voltou para a mesa onde salgadinhos frescos a esperavam, e a vida começava a ter um pouco mais de sentido de novo.