sábado, 21 de março de 2009

Chimarrão e Churrasco






Senhoras e senhores,




é com grande satisfação que nesta data lhes apresento ao vivo e a cores... Ops! Ficou mal... a fotos e a cores (melhor assim?) dois ilustres personagens,
os meus amigos peludos:

CHIMARRÃO e CHURRASCO!

Ah! É mesmo?
Eu escrevi que Chimarrão era um gato persa?
Tem certeza?
Mesmo?
Sabe o que aconteceu? Devido a esta onda de calor insuportável que assola o país, ele decidiu mudar o visual e aderiu a um corte fashion nos pêlos e também fez umas luzes escuras. Para ficar melhor na foto, está usando um par de lentes de contato azuis.
Evidentemente ele não ia querer ficar por baixo diante dos meus olhos naturalmente azuis. Vamos ser honestos, não ficou de todo ruim.

Ih! Eu também escrevi que o Churrasco era preto?
Ufa! Pelo menos desse a raça continua a mesma.
Era verão quando eu o conheci, ele estava bronzeado. Agora mandou a foto depois que fez clareamento de pele com o mesmo médico do Michael Jackson.

Querem saber mais? Já que vocês estão pressionando, agora vou entregar, mesmo.
O Churrasco não passa de uma alcatra, e o Chimarrão de uma chimarrita.

O que mais vocês podiam esperar de um felino metido a escritor?
Gato quando resolve escrever é assim mesmo, não dá para confiar em tudo que diz, pois da sua imaginação podem sair muito mais coisas do que simplesmente coelhos de uma cartola. Ela é como uma caixinha mágica na qual o mundo pode ser exatamente aquele que idealizamos. Um mundo de paz, de amor e sem miséria, violência ou fome.

Todos temos imaginação, é só saber usá-la.


4 de março de 2009

Botão no Palheiro

Churrasco é um cachorro dócil e carente, pois está sempre querendo chamar a atenção para si.
Dizer que um labrador é dócil já é uma redundância, mas vá lá.
Enquanto Chimarrão não está nem aí, com sua autoestima felina sempre bem-resolvida, Churrasco, quando pode, e isso significa todo o tempo, está com aquele olhar canino pidão:
“me ame, me ame, me ame...”
Como se não bastasse, traz um galhinho, uma folha, um pedacinho de madeira, qualquer coisa que encontrar no jardim para provar que está ali para o que der e vier.

Elas cortam tecidos, costuram, recortam, colam, bordam. Criam colchas, painéis, num exercício diário de paciência e dedicação. Churrasco é seu fiscal. Mesmo que a maior parte do tempo passe deitado fingindo-se de morto, faz-se presente.
Já tiraram um bolo de linha de sua boca, encontraram pedaços de tecidos babados no meio do jardim e tiveram que disputar com ele um projeto recém-desenhado para evitar que fosse engolido antes mesmo de se ter uma simples cópia. E, quando a galinha que haviam acabado de aplicar desapareceu do mural, a resposta para o sumiço estava na ponta da língua:
– CHURRAAASSSCOOOO!!!!

Ela gostava muito daquele vestido, embora ele não tivesse nada de especial. Havia trazido de Nova Iorque há mais de dez anos e já devia tê-lo aposentado há muito tempo. Mas ele era leve, fresco, e ela tinha a impressão de não estar usando nada, ideal para aquele calor desproporcional. Gostava da estampa de flores miúdas e, acima de tudo, dos vinte e cinco pequenos botões que fechavam a frente do vestido.
Recentemente ela havia reforçado sua costura, apesar de pregar botões ser uma coisa que detestava fazer. Porém era melhor prevenir, não queria arriscar perder um deles.

Numa tarde especialmente quente foi trabalhar com seu vestido florido, mas, ao chegar em casa, na hora de despi-lo, deu pela falta de um dos botões.
“E eu repreguei todos, será que deixei passar um?”
“Com certeza, senão isso não teria acontecido!”
Onde encontrar, passados dez anos, um botão para um vestido comprado em Nova Iorque?
Trocar todos os outros vinte e quatro? Jamais!
Procurá-lo? Não saberia nem por onde começar, seria o mesmo que procurar uma agulha no palheiro.

Estavam trabalhando e, como de costume, Churrasco se fazia presente.
A amiga perguntou:
– Churrasco, o que você está comendo?
Abriu-lhe a bocarra e vasculhou em meio à baba.
– O que esse cachorro achou para mascar desta vez?
Como o ruído de milho de pipoca sendo mordido continuou, a amiga insistiu.
Abriu a boca do cão uma vez mais e desta feita foi bem-sucedida.
– O que é isso? Não me diga que quebrou o dente?
Ela deixou seu trabalho e foi ver. Parecia um dente.
– O que foi que você aprontou desta vez, cachorro? perguntou afagando-lhe a cabeça.
Porém, quando a amiga virou o pequeno objeto para o lado contrário, ela reconheceu com grande tristeza duas listinhas verdes do que restou do seu botão.
Churrasco havia encontrado o botão no palheiro.

4 de março de 2009

terça-feira, 17 de março de 2009

Um Rei em seu Castelo



O gato chega. Chega de manso. Como só os gatos sabem chegar. Passos leves. Andar cadenciado, tão peculiar a sua espécie.
Pula na cama.
Eu finjo que ainda durmo. Estou com muita preguiça.

Hoje é sábado.
Domingo.
Feriado. Nem sei mais.
É um dia especial, dedicado a mim mesmo.
Eu sou um rei e reinarei absoluto em meus domínios.
Então está proclamado que hoje eu não farei a barba, que comerei toda a gordura da picanha mais sangrenta e que beberei toda a cerveja que quiser.
No meu castelo os cinzeiros permanecerão sujos, os jornais esparramados por toda a parte, a toalha molhada vai ficar no chão, as roupas espalhadas. Com certeza terá creme dental caído na pia e eu não vou baixar o tampo do vaso sanitário.
Hoje eu não vou vestir o que me fica bem, aliás, vou jogar fora aquele pulôver horroroso que a sogra tricotou. Também não quero saber nada de massagens, óleos, beijinhos nos pés e preliminares. Se eu quiser, sexo será somente sexo por ele mesmo.

O relacionamento deu seu suspiro final. Vinha agonizando há meses. Cobranças. Bate-bocas inúteis. Implicâncias mútuas. Fim.

Hoje é um novo dia. Uma nova vida. Começar de novo. E para isso nada como um bom descanso para refazer as energias.
Sem gravata, sem decisões, sem telefone, sem engarrafamento no trânsito, sem laptop, sem relógio ou estresse.

O que realmente importa hoje é que quero permanecer na cama indefinidamente. Curtir a minha liberdade, o meu estar só. Fazer o que bem quiser, como e quando quiser. Quero respirar fundo, espreguiçar e continuar com preguiça. Mudar de posição, virar para o outro lado e continuar a dormir.
Estou naquele estado de sonolência que beira um mergulho no espaço infinito.

Mas ainda existe um resquício de alerta em minha consciência. E é esse pouco que falta que percebe os passos que caminham sobre o meu corpo.
Mesmo sobre duas camadas de acolchoados de penas, eu sei que ele está lá.
Se estiver deitado de barriga para cima, ele se deita sobre mim. Hoje resolveu fazer do meu corpo a sua passarela.
Minha mente, um pouco mais desperta, começa a dar sinais de vida imaginando se este ato seria proposital.

– Com absoluta certeza! é a resposta.
Pois quando quer, o gato salta sobre os obstáculos. Saltos perfeitos. Milimetricamente calculados, sem sequer um esbarrão que seja no objeto a ser evitado.

Sei o que ele quer. Levanto, então, os acolchoados. Ele observa atentamente. Enfia a cara. Cheira. Sabe que não está de acordo com os seus desejos. Sou obrigado a mudar de posição. Viro de barriga para cima, dobro as pernas, permanecendo com os joelhos flexionados.

Ele, satisfeito, aninha-se na tenda formada pelas minhas pernas e as cobertas.
– Como posso eu dormir nesta posição desconfortável? pergunto para mim mesmo.
Permaneço naquele estado de sonolência nem lá nem cá, enquanto ele dorme feliz e abrigado pelo tempo que lhe é suficiente.
Tendo sua necessidade de repouso satisfeita, sai de seu esconderijo, espreguiça-se cuidadosamente e recomeça sua passeata sobre mim.

– Gato, gato! Hoje é dia de descanso, digo-lhe. Deixe-me permanecer inerte um pouco mais. Mas meu poder de persuasão não surte o menor efeito. Resolvo então abrir os meus olhos e me deparo com o seu par de olhos olhando diretamente dentro dos meus.
– Auuu! faz ele, sem desviar olhar.
Ledo engano de quem pensa que os gatos dizem “Miau!”. Todos os gatos de minha vida sempre fizeram “Au!”.

– Au! para você também, respondo sem muito entusiasmo.

Sabedor de que suas intenções começaram a surtir efeito, ele começa outro ato: demonstração de afeto.

Inclina a cabeça e passa em meu rosto. Faz uma volta em torno de si mesmo e esfrega o outro lado da sua cara. Vai até os pés da cama. Deita-se lá e, sem perder o contato visual, diz:
– Au!
Levanta-se e volta a se esfregar em mim.

São seis horas da manhã de um dia que seria dedicado a nada fazer. Mas agora
já estou totalmente desperto. Não há mais sentido em permanecer na cama.
Listo mentalmente atividades aborrecidas, por tanto tempo adiadas, e penso em colocá-las em prática.
Sento na cama. Está um dia cinzento e frio, típico de inverno. Garoa fina.

Olho com pesar para o calor da minha cama e levanto de chofre.
Caminho em direção ao início de mais um dia.

O gato? O gato, depois que me viu em pé, foi para a frente do aquecedor, onde dormiu sem culpas durante quase o dia todo. Coisa que gatos sabem fazer como ninguém.

– Esse sim é um rei em seu castelo, pensei, olhando-o com um misto de admiração e inveja.


16 de junho 2000

domingo, 15 de março de 2009

Adão, o da Eva


A palavra paraíso, te lembra alguma coisa?

Um mundo perfeito, correto?
Então tá...

Porém tenho cá minhas dúvidas... Se era perfeito, por que Eva pôs tudo a perder?
Vamos partir do princípio: nós mulheres somos curiosas.

Mas só por isso?
Curiosidade?
Saber que gosto tinha uma maçã?
Duvido...

Será que não havia mais alguma coisinha por trás da curiosidade?
Algum desejo enrustido?
Alguma insatisfação feminina?

Vejamos...
Eram ela e o Adão. Numa nice!

Ela não tinha que lavar roupas, muito menos passar, engomar camisas. Não me faça rir. Sujou? Melhor dizendo, murchou? Joga fora. Pega uma folha nova. Um guarda-roupas com uma infinidade de opções.

– Que foi Eva? Por que essa cara?

– Não agüento mais andar sempre com a mesma folha de chuchu... Vamos ao shopping, quero uma folha nova.

Não precisavam ir ao supermercado nem fazer almoço ou jantar, por conseguinte não havia louça suja que precisasse ser lavada.
Bem, eu imagino que, já que era paraíso, a comida devia aparecer como num passe de mágica... uma espécie de delivery divino... melhor não entrar em muitos detalhes.
Não tinham filhos, muito menos parentes para lhes tirar o sossego e pedir dinheiro emprestado.
Não tinham prestações para pagar, a casa era própria, não precisavam se preocupar se o mês seria muito mais longo que seu o salário, nem se teve queda na bolsa, nem com a taxa de inflação.
Não faziam declaração de imposto de renda, não precisavam de plano de saúde nem plano funeral, não se preocupavam com balas perdidas nem com balas achadas.

Eva não tinha o menor receio de que Adão se atrasasse para vir comer por dois motivos. Primeiro porque não tinham relógio, e segundo porque ele não ia a lugar algum mesmo...
Fumar?
Adão não fumava, portanto aquela desculpa: "Querida, vou até a esquina comprar cigarros", e nunca mais voltar, estava fora de cogitação. Além do que ela nem tinha como reclamar que ao beijá-lo parecia estar beijando um cinzeiro.

A cervejinha após o expediente com os amigos e o futebol das quintas e sábados não rolavam. Cheiro de suor com cerveja também não.
Nem uma loira gostosona, nem feia, pelas imediações para ele disfarçadamente olhar com o rabo do olho, que desencadeasse uma crise de ciúmes.
Não tinham carro e tampouco moto para ele ficar alisando como se fosse outra mulher.

Para ele, Eva era perfeita. A mulher da sua vida. A tampa da sua panela. A mortadela do seu sanduíche. O feijão da sua marmita. Ele jamais iria compará-la com a sua mãe, portanto, sogra era uma preocupação que ela não tinha.
Era um tal de Eva para cá, Eva para lá...
– Eva, vamos ver o pôr do sol?
– Eva, vamos ver o nascer do sol?
– Veja, Eva, está chovendo...

Já pensou?
Só os dois no paraíso?
Ele e ela.
– Faz um cafuné, Eva, eu gosto tanto...
Vinte e quatro horas por dia...
– Eva, querida, onde você está?
Sete dias por semana...
– Beijinho, Eva, beijinho...
Meses...
– Benhê, vem dormir, vem, Eva, você sabe que não durmo sem você...
Anos...
Que tédio!
Esse Adão devia ser um chato de galocha.
– Cadê aquela macieira?
– Adãããooo! Vem ver a surpresa que eu trouxe para você!

14 de janeiro de 2007



sábado, 7 de março de 2009

Picada pela Tsé-Tsé


Tem coisa mais indecente do que sentir sono?

Aquele sono medonho, que você tem certeza absoluta que se piscar os olhos um pouco mais devagar eles se fecharão e você dormirá esteja onde estiver, em pé, ali mesmo, como um cavalo, uma égua, um jumento, uma vaca...

Estava dirigindo naquele estado desesperador. Uma temeridade, um atentado à segurança dos transeuntes e a sua própria. A cabeça não mais se firmava sobre o pescoço e percebia que, mais cedo ou mais tarde, ela rolaria para algum lugar dentro do carro; antes que isso acontecesse, resolveu parar.

O pouco do cérebro que ainda dava sinais de vida alertou que estava próxima a uma confeitaria que adorava, e foi para lá que se dirigiu, aos passos. Não, ela não estava a pé, então, quem sabe, ela se dirigiu aos rodados de um cágado de muletas.

Entrou no antro do pecado da gula. Uma profusão de aromas penetrou nas suas narinas, mas, ao contrário do que usualmente acontecia quando lá chegava, aqueles odores deliciosos não alteraram em quase nada suas papilas gustativas, que decerto já se encontravam em estado de inércia absoluta.

O salão da confeitaria é pequeno e ainda bem que àquela hora, por ser muito cedo para o lanche da tarde, encontrava-se absolutamente vazio. Caminhou até a mesa mais distante, encostada na parede, e lá desmoronou. A garçonete, atenciosa, veio atendê-la com as perguntas de praxe:

– Conhece nosso sistema?

(Sistema? Que sistema? Operacional? Windows? Vista? Linux? Ou seria sistema capitalista? Comunista? Do que ela está falado?)

Fez que sim com a cabeça mais para certificar-se de esta ainda se encontrava atrelada ao seu pescoço.

– A senhora vai servir-se do bufê ou prefere o serviço à la carte?

(Que vaca! Uma pergunta com duas alternativas de resposta... Não vai poder acenar com a cabeça novamente, vai ter que usar o último neurônio e fazer uma escolha rápida.)

– Bufê! Respondeu de pronto, antes que a fala fosse afetada.

– Chá ou café?

(Que saco! Escolher de novo?)

(Saco, igual a coador, coador igual a café... Cérebro, responda, câmbio... Café, preto, expresso! Duplo!)

(Urgh! Detestava, mas iria tomá-lo como remédio, e remédio é ruim mesmo. Que venha o expresso!)

– Aceita um suco natural? Temos de morango, uva, manga e maracujá!

(Agora a moça extrapolou. Quantas eram as opções de sucos? Só conseguira ouvir duas palavras: "suco e maracujá".)

(Ela está de brincadeira comigo, pensou. Quer que eu morra. Com o sono que estou, se tomar um suco de maracujá, entro em coma "sucólico" aqui mesmo. Se quer me pôr a nocaute, me dê suco de maracujá. E nem precisa ser na veia.)

Recusou com a cabeça. Ela, a cabeça, continuava no mesmo lugar. A garçonete, cada vez mais embaçada, também.

-–Posso mandar fritar os salgadinhos?

Fez que sim. E pensou, quando sair, apague as luzes, feche a porta e volte com os salgadinhos daqui a umas três ou quatro horas, está bem?

Finalmente só.

Ela e o balcão dos doces. E o cúmulo do absurdo era estar ali, na sua confeitaria preferida, rodeada por tentações, torta alemã, trufas de chocolate, tarteletes de vários sabores, docinhos miúdos e a única coisa em que pensava era na sua cama, em se deitar e dormir.

Lembrar da cama devolveu-lhe um mínimo de consciência. Imaginou como sairia dali para voltar para casa. Conseguiria chegar até o carro? Sobreviveria ao trânsito? Não sofreria nenhum acidente durante o percurso? Não seria atropelada, seu carro não seria abalroado por algum ônibus desgovernado ou trem descarrilado? Não seria encontrada por alguma bala perdida?

Oh! Céus!

Seu sistema operacional está lento. Obsoleto. Precisa um upgrade urgente. Prestes a cair. Lamento, senhora, o sistema está fora do ar. Pode retornar mais tarde? Era o que repetia a gravação dentro da sua cabeça.

Com toda a segurança podia afirmar que não havia bebido e muito menos ingerido, tomado ou cheirado qualquer outro tipo de substância com um efeito sonífero.

Fazia um esforço hercúleo para manter a consciência:

Será que ainda sei meu próprio nome?

Meu CPF? Meu RG?

Onde moro? Qual é meu telefone?

Melhor parar por aqui e não arriscar na complexidade das perguntas.

O salão continua vazio. Não entrou ninguém desde que chegara, afinal é segunda-feira, nenhum maluco vem fazer lanche numa segunda às 13h30min. Portanto ninguém irá reparar se eu recostar a cadeira na parede e tirar uma pestana, imaginou.

Ainda bem que tivera um vislumbre de inteligência e recusara o tal suco de maracujá, caso contrário não sairia dali mesmo nem por decreto e guinchada.

Esse sono desesperador tinha uma explicação bastante simples: passou a noite em claro.

Não, ela não era médica, que havia passado a noite numa sala de cirurgia salvando vidas, justificativa bastante nobre.

Tampouco uma doutora das leis, um verdadeiro paladino da Justiça que, na calada da noite, estudava processos para que, durante o dia, o mundo não se transformasse em caos.

Nem era uma cientista pesquisando algum assunto mirabolante, que mais tarde pudesse até mesmo revelar-e totalmente inútil, mas que soaria muito imponente quando ela afirmasse:

– Estou tãããooo cansada! Passei a noite pesquisando sobre a dilatação gravitacional do tempo.

E falaria umas besteiras sobre as diferenças dos nanossegundos da hora marcada por relógios atômicos colocados a bordo da Estação Espacial Internacional.

As pessoas não entenderiam absolutamente nada, fingiriam que sim, fariam alguns comentários sem sentido sobre o assunto, seriam da opinião de que ela era muito inteligente e teriam toda a empatia pelo seu estado de sonolência.

Também não era nenhuma criatura de vida desregrada que passava a madrugada de bar em bar, bebendo, jogando conversa fora e fumando. Aliás, das três coisas, beber, fumar e conversar, só era adepta da terceira.

Ela era simplesmente um ser que trocava o dia pela noite, muitas vezes vítima de sua própria indisciplina.

Acontece que desde sempre havia sido assim. Sempre, entenda-se, por desde o momento em que colocou os pés, corrija-se, entrou de cabeça, neste mundo.

A mãe repetia para quem quisesse ouvir que ela, recém-nascida, acordava todos os dias lá pelas dezoito horas e começava o berreiro... que durava até as seis horas da manhã do outro dia, quando dormia como um anjo até as dezoito horas. Hora de acordar e começar a berrar. Pontual como um relógio suíço.

Vai ver viera com algum defeito de fabricação no botão liga/desliga. Ou no timer. Quem podia saber? Não encontrava o balcão de reclamações. E mesmo se encontrasse pouco havia que pudesse ser feito, pois o prazo de validade estava vencido, sem falar que era uma mercadoria sem nota fiscal.

Com o advento da tecnologia, as tentações para um notívago aumentaram sobremaneira. E dentro da sua própria casa. Jogos eletrônicos, DVDs, TVs, e a bendita? Maldita? Internet.

Ela possuía sua rotina de trabalho. Digitava seus textos, fazia revisões.

Se fosse necessário, alguma pesquisa; era o início do caos.

Uma simples busca por um tema qualquer nunca resultava nada menos que cerca de cinco mil itens. Alguns, que não tinham nada a ver com o assunto inicial, eram logo descartados, outros, ao contrário, levavam-na adiante, indicando outro local mais interessante ainda e dando início a um intrincado labirinto. E aquele relógio do lado direito da tela não pára.

Correio eletrônico.

Mensagens.

Os amigos que moram no exterior.

Saudade.

MSN.

Os ruídos do mundo à noite pouco a pouco diminuem. Já não ouve o portão do condomínio abrindo e fechando. Todos os moradores já estão em seus respectivos apartamentos.

Lá pela uma hora um assovio e o barulho de algo como latas chacoalhado; é o horário em que passa o caminhão da coleta de lixo.

Os carros passam cada vez mais esporadicamente, e talvez a cada meia hora (nunca se dera ao trabalho de verificar a assiduidade) escuta o apito do vigilante noturno.

Quando percebe, voltam os ruídos dos ônibus, as sabiás cantam cada vez mais, aumenta a circulação dos carros, o portão se abre e fecha a cada morador que sai. Mais um dia começa. Uma vez mais ela passa a noite inteira acordada.

Dorme, então, cerca de duas ou três horas e segue a vida em frente, para ver se na noite seguinte consegue por milagre transformar-se num ser humano normal.

(Ah! Não! Uma súbita e incontrolável vontade de fazer xixi.)

(O que é isso? O ser humano dominado pelas necessidades mais primárias?)

Bom, pelo menos foi um motivo bastante convincente para despertá-la do estado de torpor em que se encontrava até então.

Precisava de um plano tático para chegar até o banheiro. Sim, plano, pois possivelmente a vontade já estivesse presente há algum tempo, mas, como ela estava como anestesiada, não tinha percebido. Porém nesse exato momento a coisa beira as raias do insuportável. A bexiga estava prestes e explodir e inundar tudo.

(Eu não sei nadar! Vou ter que chegar ao banheiro custe o que custar.)

Mirou bem a porta. Levantou num ímpeto, encheu os pulmões de ar e, mantendo o prumo, caminhou rapidamente para a salvação.

Os poucos passos que dera até o banheiro tiveram um efeito positivo em seu estado comatoso. Após eliminar o excesso de água que se encontrava no interior do seu corpo, pensou que talvez ali, naquele minúsculo banheiro, estivesse a solução para a picada da tsé-tsé.


Abriu a torneira e molhou os pulsos na água gelada.

Teve uma idéia melhor. Com as mãos em concha encheu-as de água e jogou no rosto. Repetiu o gesto espalhando líquido por todo o lado como um pato na lagoa.

Olhou-se no espelho, o rímel, que não era à prova d′água, tinha borrado, produzindo um efeito catastrófico...

– Que merda!

Mas aquela cara de vodu pelo menos fizera o efeito de dar uma espantada, mesmo que temporária, na tsé-tsé.

Voltou para a mesa onde salgadinhos frescos a esperavam, e a vida começava a ter um pouco mais de sentido de novo.






terça-feira, 3 de março de 2009

Vida e Morte


Os presentes de Natal podem ser os mais variados possíveis, novidades tecnológicas que víamos nos desenhos dos Jetsons, máquina de lavar que fala, televisão com tela de plasma gigante, geladeira com internet, celular que tira fotografias, toca música, filma, tem GPS e, pasmem, funciona até mesmo como telefone!

Jóias, livros, DVDs, skates, roupas, chocolates, brinquedos, produtos eróticos, bebidas, viagens... A imaginação não tem limites, o bolso sim, mas isso é outra conversa.


Muitas vezes as pessoas resolvem presentear a si mesmas. Cansam de esperar que o outro adivinhe seus gostos e desejos e, sem medo de ser feliz, acertam na mosca seu próprio presente.


Pois neste Natal eu me presenteei. Um presente que vai durar minha vida inteira, e um pouquinho mais.

E duvido que alguém neste mundão de meu Deus tenha ganhado ou tenha se dado alguma coisa parecida.

Vou falar de uma vez para não ficar fazendo muito suspense. O nome é pomposo: "Contrato de Assistência Funerária", que não é nada mais nada menos que uma espécie de vale-enterro.

É esquisito?

Estranho?

Ficou louca?


Uma amiga me ligou no celular e fez a pergunta tradicional:

– Pode falar?

– Posso, sem problemas, desde que seja breve.

– Onde você está?

– Conhecendo a capela do meu velório...

– Por que isso? Onde é que você está com a cabeça?

– Por enquanto ainda em cima do meu pescoço, pois, quando não estiver no seu devido lugar, não estarei apenas visitando a capela, e sim tomando parte ativamente de uma cerimônia que nela esteja sendo realizada, pensei.


Até algumas horas antes dessa visita eu não fazia a menor idéia do custo de um velório. Mas no momento em que tomei conhecimento, e também da existência do tal auxílio-funeral, ou coisa que o valha, deixei imediatamente o que tinha para fazer e rumei para as proximidades do cemitério, que é onde, obviamente, encontra-se o escritório... ops... da funerária.


Vejam só como morrer dá trabalho:

Precisa-se de um caixão, também chamado de urna mortuária (chique, não é?).

Mesmo não sendo noiva, é necessário um véu.

E também castiçais... E como estes não podem e não devem ser colocados sobre o caixão, pois o defunto corre o risco de ser cremado caso as velas caiam sobre a sua pessoa, faltam os suportes dos castiçais.

Depois, tem aquele livro, que até hoje eu não descobri para que serve. Em todo velório que fui, sempre assino meu nome e nunca recebi uma cartinha que fosse de volta. Não consigo imaginar se as pessoas permanecem com este registro de presença e, depois de tempos, ele é lido em reuniões de família:

– Você viu a tia Maricota no enterro?

– Não, ninguém viu...

– Então quem assinou o nome dela?

– Deixa eu ver...

– Ah! Mas essa letra não é dela, mesmo...


O que mais falta?

Flores, o local do velório, terreno no cemitério, levar o defunto, pois ninguém morre em capela mortuária, muito menos dentro do cemitério. E tem ainda a documentação para a liberação do corpo para o enterro... Não basta estar morto, é preciso provar que está morto.


Essa história de "corpo" me intriga. Vamos pegar como exemplo um adulto de cerca 70 anos. Passou todo esse tempo com um nome, sobrenome, um título, talvez. Podia ser chamado de Paiêêê!!!

Ou Maaanhêêê!!!

Dr. Fulano, dona Beltrana, Benhê! Fofa!

E, de repente, num piscar de olhos, vira "o corpo".

– O corpo não foi liberado ainda...

– O corpo não chegou ao cemitério.

Com o último suspiro, a pessoa perde tudo, até mesmo sua identidade... Esquisito isso.


Como morrer requer toda essa parafernália, essa parafernália vai ter um custo evidentemente.

Um terreno pode custar entre R$2.500,00 a R$ 19.000,00.

Creio eu que a diferença deva ser conforme a sua localização, se tem vista para alguma paisagem interessante, para o morto não ficar entediado, se é um lugar seco, arejado, ensolarado, espaçoso, coisas no gênero.


As tais das urnas também variam o preço, de R$171,00 até R$13.000,00. Imagino que essa última deva ter ar-condicionado, colchão... As médias, de R$710,00 a R$1.090,00.

Trocando em miúdos, um velório custará entre R$3.500,00 e R$5.000,00 sem terreno.

De posse dessas informações estarrecedoras, no dia 23 dezembro fiquei em estado de choque.

Uma coisa é gastar essa grana viajando, fazendo alguma coisa que dê prazer. Outra completamente diferente é ser surpreendido com uma notícia:

– Tio Pedro morreu!, e lá se vai o dinheiro que você estava guardando para outro fim, literalmente enterrado com o finado, desprevenido tio Pedro.


Tenho uma tia de 86 anos, minha mãe tem 70 e alguma coisa. Isso não quer dizer nada, pois eu posso perfeitamente ser atropelada na esquina. Mas imagina-se que, seguindo uma ordem natural do Universo, elas batam as botas antes que eu.


A grande vantagem do plano é a possibilidade da inclusão de até nove membros da família.

Então, pela bagatela de R$29,90 por mês, eu posso enterrar nove parentes. Não é o máximo?


E tem a visita à capela. Já que estava no fogo, eu teria que me molhar, não é mesmo?

Depois de morta, não ia nada eu querer reclamar das instalações onde me pusessem para ser velada.


O vendedor, muito atencioso, foi me mostrando as salas diamante, rubi, esmeralda, uma jóia mais preciosa que a outra, tudo muito bonito, de bom gosto e confortável. Acabaram-se os intermináveis e incômodos velórios, nos quais os viventes terminam em pior estado que os próprios mortos. Cadeiras, não, poltronas tais quais de cinema, ar-condicionado e, conforme a jóia, digo a sala, tem até quarto para a família tirar uma soneca. Periga dormir demais e perder a hora de enterro. Olho uma cabine envidraçada e pergunto:

– O que é isso, é para DJ?

Acertei na mosca.

– É para as últimas homenagens, quem quiser passar algum filme sobre a pessoa, pôr fundo musical.

Oba! A coisa está ficando cada vez melhor. Para ficar perfeita , na minha opinião, só falta ser como velório de filme americano, com comida. Que atire a primeira pedra quem nunca sentiu fome num cemitério. Ou quem nunca saiu de um enterro e foi jantar ou almoçar fora. O morto não tem fome, os vivos têm.

Então vamos deixar de hipocrisia que um velório com um vinhozinho e alguma coisa para forrar o estômago seria muito melhor, não seria?

Salut!


27 de dezembro de 2008