quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Hoje resgatei um ser humano!

Autor Desconhecido

Hoje resgatei um ser humano! Os seus olhos encontraram os meus, enquanto ele caminhava pelo corredor olhando para dentro dos canis.
Imediatamente, senti sua necessidade e sabia que tinha de ajudá-lo.
Abanei minha cauda, mas não muito para não assustá-lo.
Quando ele parou em frente ao meu canil, tampei sua visão para que não visse o que eu tinha feito no canto de trás. Não queria que ele soubesse que ninguém ainda havia me levado para um passeio lá fora. Às vezes os funcionários do abrigo estão muito ocupados e eu não gostaria que ele pensasse mal deles.
Enquanto ele lia as informações a meu respeito, no cartão pendurado na porta do canil, eu desejava que ele não sentisse pena de mim, por causa do meu passado. Só tenho o futuro pela frente e quero fazer diferença na vida de alguém.

Ele se ajoelhou e mandou beijinhos para mim. Encostei meus ombros e minha cabeça na grade para confortá-lo. As pontas de seus dedos acariciaram meu pescoço; ele estava ansioso por companhia.
Uma lágrima escorreu pelo seu rosto e então ergui uma de minhas patas para assegurá-lo de que tudo estaria bem.

Logo, a porta de meu canil se abriu e o seu sorriso era tão brilhante que imediatamente pulei em seus braços.
Prometi mantê-lo em segurança.
Prometi estar sempre ao seu lado.
Prometi fazer todo o possível para ver aquele sorriso radiante e o brilho em seus olhos.
Tive muita sorte dele ter vindo até o meu abrigo. Há ainda tantas pessoas por aí que nunca estiverem em um abrigo de animais...
Tantos humanos para serem salvos... Pelo menos eu pude salvar um!


Hoje resgatei um ser humano!

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Minnierella, e o sapatinho que não era de cristal.

– Quatro! Eu tenho quatro anos!
Com uma mão na cintura, batia o pé e mostrava os quatro dedos uma enfurecida Zizá, aquele espirro de gente, uma semana antes do seu quarto aniversário.
Não tinha pressa de que o dia da festa chegasse rápido para brincar com os amiguinhos, para comer doces, ganhar presentes, roupas novas... nada disso! Sua pressa era em ter quatro anos, em tornar-se uma criança um ano mais velha. Só isso.
Coisa de criança. Pois, enquanto os adultos querem mais é diminuir sua idade, a criançada é louquinha para aumentar a delas.

Por mais que me esforce, por mais que procure nas minhas lembranças, não consigo encontrar o momento em que me tornei adulta. Se bem que, ao olhar para trás e mesmo para os lados observando a criançada, percebo que não há UM momento. Um Cabo da Boa Esperança, que, ao ser cruzado abre os caminhos para as Índias com seus mistérios a serem desvendados.

– Paiê, ela não gosta de Natal! Por que você não gosta de Natal?
Afirmava e perguntava um confuso Davi, muito indignado por ter tomado conhecimento da existência de um ser que não compartilhava do mesmo prazer natalino que ele.
– Mas você não gosta meeesmo de Natal? Perguntava ele, desconfiado, como se tivesse acabado de me ver descer de uma nave espacial ali mesmo na mesa de jantar.

Convenhamos, o tal Papai Noel é uma figura muito assustadora para uma criança pequena. É só fazer um teste. Nem dói. Abaixe-se. Fique de joelhos, da altura de uma criança. Imagine agora que se aproxima de você um Papai Noel. O que é que você vai enxergar? As botas pretas, as calças vermelhas, um barrigão, se tiver sorte e pegar um bem-nutrido, pois, convenhamos, há uns magrelos de dar dó. Aquele monte de barba branca. Se ele for generoso e o cachê permitir, estenderá as mãos calçadas em luvas brancas e oferecerá balas. Você ouvirá, então, lá dentro de si mesmo, por mais tentadoras que sejam as balas, a voz de mamãe dizendo:
– Nunca aceite balas de estranhos! Não pegue nada de gente que você não conhece!
Você olha para o cara meio desconfiado e percebe que ele tem um saco... de tecido, ou nas costas, ou próximo de onde estiver. Isso só vai servir para piorar a sua avaliação, porque vai trazer à sua lembrança uma figura que povoa seus pesadelos, o tal do Velho do Saco, aquele que leva criancinhas, sabe Deus para onde.
Agora, ainda querem me convencer que o tal do Papai Noel é um cara do bem?

E havia mais um detalhe: todo ano lá vinha o bom velhinho para levar minhas chupetas.
Vejam só: Chupeta em inglês chama-se “pacifier”. Traduzindo grosseiramente, “pacificador”.
Então, nossa querida mãe decide que devemos ser criaturas pacíficas. E nos apresenta a tal da chupeta. Chega, às vezes, até mesmo a passar um açucarzinho no bico para que fiquemos doces e pacíficos. Mas na hora que decidem que chega, resolvem nos tomar aquilo que nos deram.
E o pior que quem vai levar a nossa segurança embora não é ninguém mais ninguém menos que o tal do Velho do Saco. Não é enlouquecedor?

Durante anos foi travada lá em casa a batalha do “deixa de chupar chupeta”.
Muitos foram os argumentos contra seu uso: “Você agora já está uma mocinha”, “Você já está na escola”, “O que seus amigos vão dizer?”, e assim por diante.
E também foi usada como moeda para troca por muitas coisas: “Se você der a chupeta para o Papai Noel, ele trará isso, aquilo, aquele outro”.
Era um cabo-de-guerra.
Não lembro quando nem como, mas um dia eles venceram. A chupeta desapareceu definitivamente da minha vida. Vai ver que foi aí que comecei a ser gente grande.

As cascas de ferida são outro mistério. Aquelas nos joelhos principalmente têm todas a cara da infância. E daquelas infâncias bem-aproveitadas, nas quais se subia em árvores e se esfolavam os joelhos, andava de bicicleta, caía uns tombos, esfolava os joelhos, brincava de pique e esconde-esconde, corria, caía, esfolava os joelhos...
Andava, virava, mexia, lá estava ele, o joelho, ensangüentado sendo limpo pela mãe com água oxigenada e mercúrio cromo, enquanto eu, entre soluços, tentava explicar qual era a arte da vez.
O machucado começava a se cicatrizar e a casca ia se formando, umas maiores, outras menores. Umas repuxavam tanto e a vontade de se ver livre logo daquilo era insuportável e a tentação era tão grande que... um puxãozinho de leve, só um...e lá estava o machucado sangrando de novo.
À medida que fui me tornado adulta, equilibrando-me melhor nos meus passos, deixei de cair e de esfolar os joelhos...

Hoje em dia as crianças são adultos em miniatura. Basta olhar para as meninas de sete, oito anos. Batom, unhas pintadas e, pasmem, saltos altos.
Mussolini, Hitler ou Stalin teriam orgulho das regras da minha mãe. Salto alto? Só depois dos quinze anos. Ordens dadas, ordens obedecidas.

Na minha festa de aniversário de treze anos, duas de minhas amigas chegaram usando saltos altos. Isso é modo de dizer. Nos anos setenta havia só um modelo de sapato para “meninas-moças”. Era vendido numa loja chamada Cinderela, branco com um laço em cima e salto de cerca de dois centímetros.
Como só existia esse modelo, as duas chegaram juntas, usando sapatos iguais. Mas, para nós, as sem salto foi um OOOHH!!
Minha mãe, de imediato, taxou-as de ridículas afirmando que pareciam a Minnie e a Margarida.
Nós não estávamos nem um pouco preocupadas com a opinião dela. Estávamos morrendo de inveja, louquinhas para ser ridículas também.
No decorrer da festa, que era ao ar livre, as sem salto corriam, brincavam... Sim, naquela época adolescentes sadias brincavam, enquanto Minnie e Margarida só observavam, pois não podiam enfiar seus sapatinhos de salto na grama para não sujar.
Com certeza nessa hora foram elas que ficaram com invejam de nós.
Revirando esse baú de memórias, eu revejo esse momento como um filme. Um bando de meninas de treze anos correndo despreocupadas pelo gramado, enquanto duas outras em seus sapatos de salto só observam...
Elas têm vontade de entrar na brincadeira com as amigas, mas não podem. Não conseguem correr, pois irão sujar seus sapatinhos novos de Cinderela.
Talvez ainda não estivessem totalmente prontas para adentrarem no mundo das moças, quem sabe? Mas agora já deram um primeiro passo.

Existem mudanças que são inevitáveis.
Não é questão de querer ou não querer. A natureza simplesmente se encarrega delas. Enquanto muitas das minhas amigas se preocupavam por ainda não terem menstruado aos quinze anos, eu já era uma veterana nessa idade. O que não foi vantagem alguma, muito pelo contrário. Sempre tive muita cólica, um fluxo intenso, era muito infantil, estava muito mais interessada em brincar, correr pela rua. O absorvente nunca parava no lugar...
Não, criaturas, naquele tempo, que nem era idade das pedras, não haviam inventado ainda o absorvente aderente à calcinha nem o com abas. O que se usava era um aparato obsoleto, uma espécie de elástico que engatava o absorvente nele, que não servia para nada, pois o absorvente saía do lugar, vazava, era uma baixaria...

O meu corpo foi se tornando adulto, e com o passar dos tempos eu segui a sua caminhada.
Quando fiz quatorze anos, minha avó, contrariando os princípios fascistas da minha mãe, presenteou-me com os sonhados sapatos de salto. E conseguiu a proeza de encontrar um modelo completamente diferente do padrão da época.
Pode ser que até como todo adolescente eu nem tenha gostado tanto assim, pois queria ser exatamente igual aos demais. Mas de qualquer forma eu tinha ali, ao alcance das minhas mãos, o meu passaporte para o mundo dos adultos.

Naquele ano, no meu aniversário, já não teve mais correria no quintal.
Agora todas éramos Minnies e Margaridas. A festa até deve ter sido mais aborrecida, mas com certeza nós não demos tanta importância para isso.
Nossos olhos começavam a brilhar pelo Mickey e Pato Donald.
Estávamos deixando nossa infância para trás.

22 de novembro de 2008

Esse conto foi publicado no livro Travessia com o nome “Correndo de Salto Alto”

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Ora, pipocas...






Na rua o calor era dantesco, enquanto ali, no interior da loja, alguém havia errado a mão na hora de regular o ar-condicionado.
Ao abrir a porta para entrar, o cliente era saudado por uma lufada de vento polar. De qualquer forma as pessoas preferiam permanecer no polo esperando para serem atendidas do que enfrentar o que quer que fosse lá fora, naquele calor infernal.

Encostado na coluna, ele enfiava a mão no cartucho de papel parado, retirava alguns grãos de pipoca e, com um olhar bem distante (decerto vislumbrava ao longe seu iglu, doce iglu), ia mastigando vagarosamente. Nem bem acabava aquele bocado, a mão já estava de novo dentro do saco em busca de uma nova porção, num gesto mecânico e repetitivo.
A mulher que o acompanhava estava grávida e encontrava-se parada um pouco a sua frente. Usava um vestido de malha justo, que marcava bem sua enorme barriga saliente e seu umbigo saltado. A filha deles, de cerca de sete anos, corria para cá e para lá impaciente com a demora.

“Idosos, gestantes, lactentes, mulheres com crianças pequenas e pessoas com necessidades especiais terão preferência no atendimento”, dizia o cartaz. Mas todos os atendentes já estavam ocupados. Com certeza eles seriam os próximos.

A menina, entre uma corrida e outra, vinha para perto dos pais, servia-se de um punhado de pipocas e continuava a correr desatinadamente, derrubando um tanto delas pelo chão de granito da assistência técnica de telefones celulares.

A moça, sem tem nada o que fazer, a não ser esperar em pé naquela fila, distraidamente, começou imitar o marido e serviu-se de um grão de pipocas.
Mais outro.
Certamente movida pelo tédio, sem uma palavra apoderou-se do cartucho, tirando-o das mãos do marido.

A fila não andava.

Ela delicadamente comeu um grão de pipoca de cada vez.


A barriga marcada pelo vestido de malha era descomunal. Era ela que estava muito grávida ou era o vestido que dava aquele efeito de enormidade?

Um desajeitado servente veio repor o galão de água. Não foi feliz ao tentar encaixá-lo em seu suporte, molhando uma boa parte da loja e desperdiçando o precioso líquido. Sem perceber o seu erro, foi embora, dando sua missão como cumprida.

A barriga... a barriga naquele vestido de malha era algo que impressionava. Talvez nem fosse ela por si só, mas o umbigo saltado, apontando para fora.
Ou os dois...
Ela continuava comendo pipocas, um grão de cada vez.


Um grão.


Um grão a mais...


O derradeiro grão foi que causou o pandemônio.
A menina parou de correr estarrecida. O pai voltou de supetão da viagem que estivera fazendo.
Tal qual uma bexiga em festa de criança, o barrigão explodiu, jorrando água por todo lado.
Água essa que veio juntar-se àquela derramada pelo galão, molhando praticamente todo o chão de granito da assistência técnica de telefones celulares.

Uma gravação repetia sem parar: “Celular fora da área de serviço ou desligado.” Os aparelhos que ali se encontravam, por não funcionarem a contento, entraram em curto e deixaram de funcionar definitivamente.

Janeiro de 2008

- Hila Leslie?

Pergunto ao mordomo.
– Milady assiste à partida de cricket, responde ele.
Olho através da janela e a vejo. Sentada à sombra do caramanchão de glicínias, vestido de renda branco, colar de pérolas, pernas cruzadas, deixando entrever os tornozelos com suas meias de seda branca... Sorri misteriosa quando leva a xícara aos lábios, bebericando seu chá.
– Sinto muito, milorde, não pode se aproximar dela.
– Por que não?, pergunto.
– Porque milady existe tão-somente na minha imaginação.





12 de abril de 2009














domingo, 22 de novembro de 2009

Minha Vida de cão






Meu nome é Tobias, tenho quatro meses e sou um cãozinho. Não sou igual à maioria dos outros cachorros. Eu sou especial, sou da raça da moda. Todos me querem e pagam muito caro para poderem me levar para casa.

Eu moro num apartamento. Tenho muito mais do que preciso. Uma cama quentinha, ração balanceada na hora certa, um guarda-roupa completo para eu não sentir frio. Tenho até mesmo uma camisa de futebol do time preferido do meu dono e acreditem: uma capa de chuva!

A cada duas semanas sou levado ao pet shop, onde sou banhado, tosado e perfumado. Meus pelos ficam macios como veludo.
As crianças brincam comigo. Quando saio à rua, todos me param e mexem comigo. Os adultos me afagam e dizem que sou uma gracinha.

*******
O tempo passou tanto para mim quanto para a família que pagou muito caro a fim de me levar para a sua casa. Já não sou mais um filhote engraçadinho. A minha raça também já saiu de moda. Foi substituída por outra... Coisas de marketing.

Envelheci, pois é a ordem natural da vida. Preciso de maiores cuidados, de mais atenção. A empregada, que ultimamente estava me levando para passear, já tem muito serviço para fazer. Os adultos, cheios de responsabilidades, estão sempre muito ocupados fazendo contas e pensando no dinheiro que têm de trazer para casa.
As crianças cresceram, têm o seu tempo todo tomado, e eu perdi a graça.

Tentava ainda recebê-los abanando o rabo quando chegavam, e me diziam:
– Agora não!
– Não vê como estou ocupado?
– Sai para lá, babão!
– Esse cachorro está ficando burro!

Aos poucos fui sendo esquecido, assim como aquele brinquedo velho com que as crianças não brincam mais.
*******
Meu nome é Tobias. Ainda sou um cão de raça, mas hoje ninguém mais me quer. Moro por aí. Durmo encolhido num cantinho qualquer. Quando chove, se não encontro um lugar onde me abrigar, fico todo encharcado. Os meus pelos são emaranhados, ásperos e estou sempre imundo. Como quando encontro algum resto ou quando uma alma caridosa me joga algumas migalhas.
Nenhuma criança brinca comigo, e os adultos, ao passarem por mim, olham-me com desprezo, torcem o nariz e me enxotam dizendo:
– Sai para lá, cão sarnento!
– Como é fedido!
– Que imundície!
E seguem seus caminhos, cheios de seu egoísmo e vaidade.

E eu?

Não me abandone...
Eu sinto a sua falta!


11 de maio de 2000

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Não ser




Ela suspirou. Rolou na cama. Cobriu a cabeça com o travesseiro. Depois de algum tempo, abriu um olho e espiou para ver se existia vida para além da sua cama.

Bocejando, com muita preguiça, levantou-se.
Pensou:
– Hoje não vou fazer nada, absolutamente nada.
Onde está escrito... qual é a lei ou decreto que obriga o ser humano a trabalhar? A fazer o que quer que seja? A ser produtivo, útil?

Esfregou os olhos.
– Ah! Tem alguma coisa a ver com a Bíblia, não tem? Só porque a tal da Eva comeu uma maçã todo mundo está pagando o pato. Só podia ser coisa de religião...

Mas hoje ela estava pouco se lixando para a Eva. Não queria saber dela nem de ninguém mais. E de nada também. Dirigiu-se até a sala, desligou o telefone e se jogou no sofá. Lá permaneceu, olhando para o teto.
Ué?! Não fazem meditação sentados, naquela posição desconfortável, pernas cruzadas? Ela acabara de descobrir uma posição fantástica! Estava meditando.
Cochilou.

Quando acordou, sabe-se lá que horas eram. Também pouco importava, não iria fazer nada mesmo, e fazer nada significava também não olhar para o relógio.
Mas seu estômago não pensava assim e ela sentiu uma espécie de fome.

Balançou as pernas. Primeiro a esquerda, depois a direita para fora do sofá. Tateando com os pés conseguiu encontrar suas pantufas. Calçou um pé e depois o outro ainda deitada. Contrariando todas as recomendações fisioterapêuticas, levantou-se toda desconjuntada.

Dirigiu-se para a cozinha e abriu a geladeira.
Ops! Apocalipse now!
O fim do mundo já havia chegado.
As opções eram... quase nenhuma, digamos assim. E sua vontade de fazer o que quer que fosse para comer era nenhuma também.
Pedir um delivery? Nem pensar, muito trabalho. Era dia de não fazer nada, e falar ao telefone demandava esforço.

– Um copo de leite! Excelente escolha. Uma maçã.
Vai ver foi esse o problema da tal Eva. Geladeira vazia...
And that's all, folks!

Depois desta lauta refeição, decidiu mudar de aposento e voltou ao quarto, direto para a cama. Enrolou-se em suas cobertas, apanhou um livro na mesa de cabeceira. Ler não era muito trabalhoso, poderia fazê-lo.
Viajou mundos, conheceu pessoas, sentiu o calor do verão, o perfume das flores naquelas folhas de papel.
As horas se passaram sem que ela percebesse. Só se deu conta do tempo quando o estômago, sempre ele, acendeu o seu sinal:
– Fome! Fome!

Nova incursão à geladeira, na esperança de que alguma coisa houvesse mudado. Sabe-se lá, não existe a teoria da geração espontânea?
– Vai que alguma coisa tenha se criado lá dentro nessa faixa de tempo.

Qual o quê.
O interior da geladeira havia sido atingido pela bomba atômica. Era o Day after.
Decidiu variar o cardápio anterior. Em vez de um copo de leite e uma maçã, seria uma maçã e um copo de leite. Escolha feita, voltou para o sofá.
Do sofá para a cama.
Da cama para o sofá.

Usava seu pijama xadrez cor-de-rosa de flanela e as pantufas do Garfield.
Tomou um banho demorado e trocou um pijama por outro.
Esse dia de absoluta vagabundagem ela costumava chamar de “dia de arrastar o pijama”.
Se lhe perguntassem “Ser ou não ser? Eis a questão!”, ela responderia:
– Num dia de arrastar o pijama? Definitivamente, não ser!

14 de janeiro de 2007



quarta-feira, 18 de novembro de 2009

www.match.com




Ela olhou para os lados a fim de ver se ninguém estava olhando, depois percebeu que não tinha motivos para tomar essa precaução já que morava sozinha. Então, vagarosamente digitou: www.match.com.
Sentia-se uma perfeita imbecil entrando num site de relacionamentos, pois ainda era do tempo em que pessoas se conheciam quando eram apresentadas umas às outras. Todo seu complexo de colégio de freiras veio à tona quando se deparou com a frase: “mulher procura homem”.
– Que baixaria... Mas, já que abri a página, que seja... vamos ver que bicho vai dar.

Idade...
– E agora?
– Não sou atriz de novela cheia da grana para querer um garotão de vinte anos.
– De 45 a 55, vai lá.
Clique.
Quer fazer cadastro?
– Eu? Nem pensar!
Só visitando.
Clique.
Agora vai.

As fotos dos candidatos começaram a aparecer.
– O que é isso?
– Terrorista?
– Assassino?
– Serial killer?
– Será que não estou na página da Interpol?

– Esse sujeito tem a petulância de dizer que tem cinqüenta anos? Detonado desse jeito?
E desfilavam fotos e mais fotos, uma pior que a outra. Nem de mandar uma foto melhorzinha, mais bem produzida eram capazes. Fotos nas quais aparece a sala de jantar com a TV ligada no fundo, um horror!

E as descrições então? Eram todos atléticos, amantes de esportes e vida ao ar livre. Nenhum deles foi honesto o suficiente para se descrever como gordo e barrigudo.
Como alguém pode ser atlético, esportista com aqueles corpos? A não ser que tomar cerveja seja considerado esporte.
E um detalhe, nenhum dos de 55 anos queria uma mulher de 50. Queriam mulheres de trinta e cinco, quarenta anos, também atléticas e amantes do ar livre.

– O que exatamente quer dizer isso? Por acaso o ar não é livre? Estamos tendo que pagar pedágio por ele? Ou... saquei, é código, quer dizer, sacanagem ao ar livre.
Pode ser interessante, desde que não esteja frio, não tenha insetos, não esteja chovendo, não tenha areia... Sabe o que mais? Natureza? Estou fora!

Ela pensou se ao menos teria alguma chance de fazer seu anúncio.
“Gorda, preguiçosa, detesta fazer exercícios, adora comer, ficar em casa de pijama, procura um gostosão preguiçoso que goste de cozinhar...”
Sem chance.

Desligou o computador.
Ligou a TV. Estava passando um filme.
– Ora, vejam só, puseram anúncio na internet para a mocinha do filme.
– Viu como isso é uma furada? O primeiro cara que ela vai encontrar é seu pai.
– Olha, vejam só um encontro com cachorros...
Apesar de ser um filme, encontrar pessoas no parque dos cães não é uma idéia de todo desprezível. Pelo menos é gente de carne e ossos, muito melhor do que os bandidos virtuais.
– Porém, não vou nem me dar ao trabalho de pegar um cachorro emprestado com alguma amiga. Se fosse um de pelúcia até poderia ser, mas de verdade está fora de cogitação, pois não sou chegada a bichos. Mas, enfim, vou lá como quem não quer nada.

Dois bulldogs com cara de poucos amigos...
Um lhasa histérico...
Um pitbull cheio de energia que corria atrás de uma bola incessantemente...
Um lulu-da-pomerânia que pensava ter o rei na barriga...
Um casal de humanos dando uns malhos...
Um gay lendo... “que desperdício, ele não é de se jogar fora!”
Mulheres e mais mulheres fofocando...
Um casal gay tomando sol enquanto seu chiuaua provocava um labrador...

Ela não sabia o que era pior, se se sentia mais idiota agora ali, no meio daquela cachorrada toda, sem ter nenhum cachorro, tentando recriar o clima de um filme... ou quando entrara no site.

– Definitivamente, isso não serve para mim. Vou voltar para a minha toca.
Fez meia-volta.
E pisou num cocô de cachorro fresquinho que o dono não tivera tempo de recolher.

– Merda!

14 de janeiro de 2007