quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Amigos Peludos


Na rodoviária, pessoas e bagagens formam um amontoado só. Alto-falantes anunciam as partidas dos ônibus cada vez mais seguidamente. Automóveis chegam e despejam cada vez mais passageiros. Tamanho o frenesi e a ânsia por partir que a sensação que eu tenho é de que algo terrível está acontecendo. Alguma ameaça, um perigo iminente que impele retirada em massa das pessoas para um lugar seguro.

O sinal abre. Arranco sem pressa. Não vou a lugar
algum... meu rumo é outro.
Já há algum tempo desisti das tais viagens de final de ano. Não vejo menor sentido em enfrentar uma estrada congestionada, chegar a uma praia cheia de gente...

– Com licença, tem um lugar para eu pôr meu guarda-sol?

– Desculpe, minha cadeira esbarrou na sua...

Levar bolada de criancinhas, ouvir choro de pimpolhos e gritos de suas progenitoras, ser atropelada por pranchas de surfe.
Enfrentar filas em supermercados, panificadoras, sorveterias, lanchonetes e ainda ser assaltada na hora de pagar por produtos superfaturados.

Cidades praianas com infra-estrutura desejável, passa ano, entra ano, a história é sempre a mesma: falta água, poluição, saneamento deficiente ou inexistente.
Se faz muito calor, é o mesmo que estar no inferno, grudando e melada o tempo todo. Se chove e esfria, é um tédio sem fim.

Esta é a razão das pessoas correrem no final do ano, as tais das férias de verão. Isso é o que me faz parar e permanecer exatamente onde estou.
Passada toda a euforia das compras e festas, a cidade fica despovoada. Um silêncio só. A impressão que tenho é de que posso ficar pelada na rua que alguém só irá perceber depois de muito tempo, tamanha quietude e calma.

Chego ao meu destino. Estaciono o carro.
Meus amigos gaúchos vão para seu pago, como eles chamam o seu Rio Grande, passar as festas e as férias das crianças com suas famílias, bem como os cariocas e os pés-vermelhos. Aqueles cuja família mora no exterior já viajaram, e quem trabalha e vai aproveitar só os feriados partirá nas próximas horas. Fui nomeada guardiã de plantas, carros, jardim e de uma tartaruga.

Os gaúchos já se encontram pilchados, prontos para montar seus pingos e galoparem rumo aos pampas. Falta apenas o gaudério chegar, pois que ainda se encontra no escritório dando as últimas ordens para seu computador.

Cuias, bombas, espetos, pelegos, presentes, malas, tudo acondicionado só aguardando a chegada do chefe da família para pegarem a estrada.
A gurizada corre de um lado para outro mais ansiosa que anão em comício. Não vêem a hora de partir, pois querem chegar logo à estância dos avós e se encontrar com os primos para brincar.

Mesmo estando atulhada de bagagens e com a algazarra da gurizada, para mim a casa já parece vazia. Sinto falta de Churrasco e Chimarrão, o labrador preto e o gato persa, que já foram encaminhados para seus respectivos hotéis.

Pego a bola vermelha com a qual costumo brincar com Churrasco e que está largada no meio do gramado. Sinto sua presença aonde quer que eu olhe naquele quintal. Suspiro e deixo a bola onde encontrei.

Dentro da casa também me sinto esquisita sem o Chimarrão se enroscando entre minhas pernas e miando para que eu jogue seu rato de pele para ele caçar.
Recebo as chaves, o controle remoto do portão, a senha do alarme, o manual completo de instruções.

Esse ar de fim de feira me deixa melancólica. Não é simplesmente o fato da partida em si. Mas os objetos empacotados prontos para serem levados, a casa fechada... sei lá. Talvez coisas de vidas passadas, vai saber.
Nessas férias vou sentir falta dos meus amigos... de quatro patas.

28 de dezembro de 2008

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Reflexões na Churrascaria

Numa quinta-feira, assim, do nada, sem o menor aviso prévio, fui acometida por um avassalador desejo carnal... de comer carne, bem entendido.


Não um bife qualquer, um strogonoff ou um ensopado. Minha porção mulher das cavernas queria um churrasco. Não vou dizer que “queria sangue”, porque nunca gostei de carne malpassada, aquela coisa de comer boi quase vivo, da picanha sangrando. Mas minha boca se enchia de água só de pensar num espeto corrido.
– Que coisa mais fora de hora!
Como se dentro de nosso estômago houvesse dia e noite e também relógio para que ele soubesse o horário das refeições.


Aquele pensamento foi se avolumando dentro da minha cabeça: “carne, carne, carne” e, como um polvo, foi me envolvendo com seus tentáculos.
– Quer saber? Disse para mim mesma, que venha o touro, quero dizer, o boi. Está decidido! Vou a uma churrascaria agora.
Já que eu não havia nenhum Piteco disponível, aquele personagem pré-histórico dos gibis do Mauricio de Sousa, então eu teria que bancar a Tula e providenciar o meu mamute para o almoço.


No lado da cidade onde eu me encontrava, existia um estabelecimento em que eu nunca havia estado anteriormente, mas do qual já tinha tido boas referências. Foi para lá que me dirigi ansiando por uma orgia gastronômica.
Para um dia de semana, naquele horário estranho, afinal já era uma e meia, o restaurante estava praticamente cheio.
A casa era decorada como um rancho, com cabeças de boi, acordeons, laços, boleadeiras, fotos e gravuras de cavalos e de gaúchos, que pretendiam remeter memórias aos pampas do Sul.
No centro o já tradicional bufê de saladas e pratos quentes.
Alguns destes bastante fora do lugar, pois o que faz uma moqueca de peixe numa churrascaria? Agora virou moda, mas sushi... Tem coisa mais descombinada do que sushi e churrasco?


Dei uma passada rápida em volta do bufê, afinal eu não fora lá para comer alface e muito menos a esquisita moqueca. Munida de farofa, um corajoso pastel, com certeza absoluta recheado com sobras das carnes assadas, e um pedaço de polenta, voltei ao meu lugar e esperei os espetos começarem a correr. Ou não é por isso que chamam espeto corrido? Ah! Sorry, agora é rodízio. Espetos corridos são em beira de estrada, para caminhoneiros... Qual é a diferença entre um e outro? Caminhoneiro é diferente de gente da cidade? Deixa prá lá... Devo estar sendo acometida por algum “delirious carnis”.


– Aceita filé argentino?
– Oba! Foi dada a largada...
Não sei como os garçons fazem para escolher sempre o pior pedaço para pôr no meu prato. O tal filé estava bem saboroso, tirando fora os nervos e a gordura.
Veio costela, mais ou menos; picanha, ruim; fraldinha, horrível; cupim, estava bom, pois era um monte de gordura, mas, quando resolvi repetir, me arrependi; deveria ter permanecido com a lembrança do primeiro pedaço. O carneiro, que adoro, devia ser um bode velho, tão duro que estava, mesmo um não tendo parentesco algum com o outro.


Massas, outra combinação esdrúxula em churrascaria, tão esquisita quanto pizza com ketchup, mas tem gente que a-do-ra, fazer o quê? E vinham os cannelloni, rondelli, spaghetti, os muito estranhos gnocchi fritos acompanhados de molhos de aparência suspeita. Diante daquela que é a preferida por nove entre dez pseudo-ítalo-brasileiros, a tal da lasagna à bolonhesa, decidi me aventurar pelo mundo dos conchiglioni recheados com abóbora e me arrependi na primeira bocada. Tentei ainda a segunda, pois sou teimosa: “incomível”! Tradução: impossível de comer.


Constatei que não me havia sido oferecido, em nenhum momento, aquilo que, junto com o coração de frango, é de praxe, os dois espetos iniciais em qualquer churrascaria que se preze.
– Falta alguma coisa?
– Falta sim, lingüiça. Quero dizer, não passou o espeto de lingüiça.
– Vou providenciar.


Enquanto aguardava a tomada de providência do rapaz, deixei de olhar para o prato, que fora até aquele momento o foco de toda a minha atenção, e percorri o salão com os olhos até onde pude alcançar, sem ter que fazer nenhum esforço de virar a cabeça para onde quer que fosse.
Comecei observar os freqüentadores do local, que até então haviam estado ofuscados pelo meu maior interesse, que eram as carnes que eu estivera me esforçando para comer.


À minha frente eu via cerca de quinze, dezesseis mesas com quatro lugares cada. Todas estavam ocupadas. Percebi um fato curioso: nessas mesas que eu podia enxergar, encontravam-se sentados, de modo geral, duas, três ou quatro pessoas.
Dois homens ou um homem e uma mulher; dois homens e uma mulher ou duas mulheres e um homem, quatro homens. A curiosidade era que três mesas com uma só pessoa eram ocupadas por mulheres, inclusive a minha. Não tinha uma mesa com um homem almoçando desacompanhado.
Fiquei intrigada e resolvi espichar o pescoço e dar uma geral no restaurante todo. Vi conchiglioni pavorosos que pareciam haver saído de um filme de terror, pois boiavam numa calda grossa de chocolate. Fiquei enjoada...
Mas nenhum homem curtindo sua própria companhia.


Meditei sobre o caso enquanto aguardava as ditas lingüiças.
Será que homens não vão a churrascarias sozinhos em dia de semana?
Homens não gostam de comer sós?
Mulheres não se importam, nós estamos na nossa. Vamos aonde queremos, comemos o que desejamos (desde que tragam as benditas lingüiças...), não nos importamos se estamos sentadas sós ou acompanhadas.
Basta ver que os homens, quando se separam, vão para onde? Casa da mamãe.
As mulheres? Ralam, mas vão se virar sozinhas bem longe das asas maternas.
Filosofava intrigada quando minha vizinha da mesa à frente se mexeu para pedir a conta. Fiquei um tanto quanto ofuscada com o brilho das lantejoulas e o colorido da sua roupa.
– Já é Carnaval? Faz quanto tempo assim que estou aqui esperando por esse espeto de lingüiças?


Resolvi desistir e pedi a conta. Foi me oferecido um cafezinho para compensar a falta da lingüiça. Ora, vejam só, desde quando um cafezinho serve como substituto de lingüiça, mas vá lá, vou fingir que acredito. E também como se eu não soubesse que o cafezinho é para todos e não só para os sem-lingüiças.


Como gosto daqueles cafés bem sem-vergonha, fraquinhos, ainda perguntei se era café de máquina temendo a possibilidade, ainda que remota, de vir um expresso.
– É café normal, esclareceu o garçom.
Mesmo para mim, uma criatura sem nenhuma cultura cafeeira, pois tomo água suja como café, aquilo era muito ruim. Desisti do café.
Fiz como a raposa e as uvas... No final das contas as lingüiças poderiam ser ruins como todo o resto... As lingüiças estavam verdes.
Mas, de qualquer forma, não vale a pena chorar sobre a lingüiça derramada.


Ninguém informou para o Word que houve uma mudança ortográfica, portanto a lingüiça dele vai continuar tendo trema. Eu é que não vou me meter a besta de ficar tirando trema da lingüiça de ninguém.

22 de janeiro de 2009