sábado, 7 de março de 2009

Picada pela Tsé-Tsé


Tem coisa mais indecente do que sentir sono?

Aquele sono medonho, que você tem certeza absoluta que se piscar os olhos um pouco mais devagar eles se fecharão e você dormirá esteja onde estiver, em pé, ali mesmo, como um cavalo, uma égua, um jumento, uma vaca...

Estava dirigindo naquele estado desesperador. Uma temeridade, um atentado à segurança dos transeuntes e a sua própria. A cabeça não mais se firmava sobre o pescoço e percebia que, mais cedo ou mais tarde, ela rolaria para algum lugar dentro do carro; antes que isso acontecesse, resolveu parar.

O pouco do cérebro que ainda dava sinais de vida alertou que estava próxima a uma confeitaria que adorava, e foi para lá que se dirigiu, aos passos. Não, ela não estava a pé, então, quem sabe, ela se dirigiu aos rodados de um cágado de muletas.

Entrou no antro do pecado da gula. Uma profusão de aromas penetrou nas suas narinas, mas, ao contrário do que usualmente acontecia quando lá chegava, aqueles odores deliciosos não alteraram em quase nada suas papilas gustativas, que decerto já se encontravam em estado de inércia absoluta.

O salão da confeitaria é pequeno e ainda bem que àquela hora, por ser muito cedo para o lanche da tarde, encontrava-se absolutamente vazio. Caminhou até a mesa mais distante, encostada na parede, e lá desmoronou. A garçonete, atenciosa, veio atendê-la com as perguntas de praxe:

– Conhece nosso sistema?

(Sistema? Que sistema? Operacional? Windows? Vista? Linux? Ou seria sistema capitalista? Comunista? Do que ela está falado?)

Fez que sim com a cabeça mais para certificar-se de esta ainda se encontrava atrelada ao seu pescoço.

– A senhora vai servir-se do bufê ou prefere o serviço à la carte?

(Que vaca! Uma pergunta com duas alternativas de resposta... Não vai poder acenar com a cabeça novamente, vai ter que usar o último neurônio e fazer uma escolha rápida.)

– Bufê! Respondeu de pronto, antes que a fala fosse afetada.

– Chá ou café?

(Que saco! Escolher de novo?)

(Saco, igual a coador, coador igual a café... Cérebro, responda, câmbio... Café, preto, expresso! Duplo!)

(Urgh! Detestava, mas iria tomá-lo como remédio, e remédio é ruim mesmo. Que venha o expresso!)

– Aceita um suco natural? Temos de morango, uva, manga e maracujá!

(Agora a moça extrapolou. Quantas eram as opções de sucos? Só conseguira ouvir duas palavras: "suco e maracujá".)

(Ela está de brincadeira comigo, pensou. Quer que eu morra. Com o sono que estou, se tomar um suco de maracujá, entro em coma "sucólico" aqui mesmo. Se quer me pôr a nocaute, me dê suco de maracujá. E nem precisa ser na veia.)

Recusou com a cabeça. Ela, a cabeça, continuava no mesmo lugar. A garçonete, cada vez mais embaçada, também.

-–Posso mandar fritar os salgadinhos?

Fez que sim. E pensou, quando sair, apague as luzes, feche a porta e volte com os salgadinhos daqui a umas três ou quatro horas, está bem?

Finalmente só.

Ela e o balcão dos doces. E o cúmulo do absurdo era estar ali, na sua confeitaria preferida, rodeada por tentações, torta alemã, trufas de chocolate, tarteletes de vários sabores, docinhos miúdos e a única coisa em que pensava era na sua cama, em se deitar e dormir.

Lembrar da cama devolveu-lhe um mínimo de consciência. Imaginou como sairia dali para voltar para casa. Conseguiria chegar até o carro? Sobreviveria ao trânsito? Não sofreria nenhum acidente durante o percurso? Não seria atropelada, seu carro não seria abalroado por algum ônibus desgovernado ou trem descarrilado? Não seria encontrada por alguma bala perdida?

Oh! Céus!

Seu sistema operacional está lento. Obsoleto. Precisa um upgrade urgente. Prestes a cair. Lamento, senhora, o sistema está fora do ar. Pode retornar mais tarde? Era o que repetia a gravação dentro da sua cabeça.

Com toda a segurança podia afirmar que não havia bebido e muito menos ingerido, tomado ou cheirado qualquer outro tipo de substância com um efeito sonífero.

Fazia um esforço hercúleo para manter a consciência:

Será que ainda sei meu próprio nome?

Meu CPF? Meu RG?

Onde moro? Qual é meu telefone?

Melhor parar por aqui e não arriscar na complexidade das perguntas.

O salão continua vazio. Não entrou ninguém desde que chegara, afinal é segunda-feira, nenhum maluco vem fazer lanche numa segunda às 13h30min. Portanto ninguém irá reparar se eu recostar a cadeira na parede e tirar uma pestana, imaginou.

Ainda bem que tivera um vislumbre de inteligência e recusara o tal suco de maracujá, caso contrário não sairia dali mesmo nem por decreto e guinchada.

Esse sono desesperador tinha uma explicação bastante simples: passou a noite em claro.

Não, ela não era médica, que havia passado a noite numa sala de cirurgia salvando vidas, justificativa bastante nobre.

Tampouco uma doutora das leis, um verdadeiro paladino da Justiça que, na calada da noite, estudava processos para que, durante o dia, o mundo não se transformasse em caos.

Nem era uma cientista pesquisando algum assunto mirabolante, que mais tarde pudesse até mesmo revelar-e totalmente inútil, mas que soaria muito imponente quando ela afirmasse:

– Estou tãããooo cansada! Passei a noite pesquisando sobre a dilatação gravitacional do tempo.

E falaria umas besteiras sobre as diferenças dos nanossegundos da hora marcada por relógios atômicos colocados a bordo da Estação Espacial Internacional.

As pessoas não entenderiam absolutamente nada, fingiriam que sim, fariam alguns comentários sem sentido sobre o assunto, seriam da opinião de que ela era muito inteligente e teriam toda a empatia pelo seu estado de sonolência.

Também não era nenhuma criatura de vida desregrada que passava a madrugada de bar em bar, bebendo, jogando conversa fora e fumando. Aliás, das três coisas, beber, fumar e conversar, só era adepta da terceira.

Ela era simplesmente um ser que trocava o dia pela noite, muitas vezes vítima de sua própria indisciplina.

Acontece que desde sempre havia sido assim. Sempre, entenda-se, por desde o momento em que colocou os pés, corrija-se, entrou de cabeça, neste mundo.

A mãe repetia para quem quisesse ouvir que ela, recém-nascida, acordava todos os dias lá pelas dezoito horas e começava o berreiro... que durava até as seis horas da manhã do outro dia, quando dormia como um anjo até as dezoito horas. Hora de acordar e começar a berrar. Pontual como um relógio suíço.

Vai ver viera com algum defeito de fabricação no botão liga/desliga. Ou no timer. Quem podia saber? Não encontrava o balcão de reclamações. E mesmo se encontrasse pouco havia que pudesse ser feito, pois o prazo de validade estava vencido, sem falar que era uma mercadoria sem nota fiscal.

Com o advento da tecnologia, as tentações para um notívago aumentaram sobremaneira. E dentro da sua própria casa. Jogos eletrônicos, DVDs, TVs, e a bendita? Maldita? Internet.

Ela possuía sua rotina de trabalho. Digitava seus textos, fazia revisões.

Se fosse necessário, alguma pesquisa; era o início do caos.

Uma simples busca por um tema qualquer nunca resultava nada menos que cerca de cinco mil itens. Alguns, que não tinham nada a ver com o assunto inicial, eram logo descartados, outros, ao contrário, levavam-na adiante, indicando outro local mais interessante ainda e dando início a um intrincado labirinto. E aquele relógio do lado direito da tela não pára.

Correio eletrônico.

Mensagens.

Os amigos que moram no exterior.

Saudade.

MSN.

Os ruídos do mundo à noite pouco a pouco diminuem. Já não ouve o portão do condomínio abrindo e fechando. Todos os moradores já estão em seus respectivos apartamentos.

Lá pela uma hora um assovio e o barulho de algo como latas chacoalhado; é o horário em que passa o caminhão da coleta de lixo.

Os carros passam cada vez mais esporadicamente, e talvez a cada meia hora (nunca se dera ao trabalho de verificar a assiduidade) escuta o apito do vigilante noturno.

Quando percebe, voltam os ruídos dos ônibus, as sabiás cantam cada vez mais, aumenta a circulação dos carros, o portão se abre e fecha a cada morador que sai. Mais um dia começa. Uma vez mais ela passa a noite inteira acordada.

Dorme, então, cerca de duas ou três horas e segue a vida em frente, para ver se na noite seguinte consegue por milagre transformar-se num ser humano normal.

(Ah! Não! Uma súbita e incontrolável vontade de fazer xixi.)

(O que é isso? O ser humano dominado pelas necessidades mais primárias?)

Bom, pelo menos foi um motivo bastante convincente para despertá-la do estado de torpor em que se encontrava até então.

Precisava de um plano tático para chegar até o banheiro. Sim, plano, pois possivelmente a vontade já estivesse presente há algum tempo, mas, como ela estava como anestesiada, não tinha percebido. Porém nesse exato momento a coisa beira as raias do insuportável. A bexiga estava prestes e explodir e inundar tudo.

(Eu não sei nadar! Vou ter que chegar ao banheiro custe o que custar.)

Mirou bem a porta. Levantou num ímpeto, encheu os pulmões de ar e, mantendo o prumo, caminhou rapidamente para a salvação.

Os poucos passos que dera até o banheiro tiveram um efeito positivo em seu estado comatoso. Após eliminar o excesso de água que se encontrava no interior do seu corpo, pensou que talvez ali, naquele minúsculo banheiro, estivesse a solução para a picada da tsé-tsé.


Abriu a torneira e molhou os pulsos na água gelada.

Teve uma idéia melhor. Com as mãos em concha encheu-as de água e jogou no rosto. Repetiu o gesto espalhando líquido por todo o lado como um pato na lagoa.

Olhou-se no espelho, o rímel, que não era à prova d′água, tinha borrado, produzindo um efeito catastrófico...

– Que merda!

Mas aquela cara de vodu pelo menos fizera o efeito de dar uma espantada, mesmo que temporária, na tsé-tsé.

Voltou para a mesa onde salgadinhos frescos a esperavam, e a vida começava a ter um pouco mais de sentido de novo.






4 comentários:

  1. Aposto que era a Valbella!
    E veja que sua ala gêmea está aqui, 2h41 brigando com as pálpebras que quiseram se fechar ali pela meia noite... Por que nos punimos assim?
    A verdade é que o mundo é muito mais interessante quando todos estão dormindo. Olho pela janela agora e tenho a sensação de que estou VIVENDO enquanto todos estão pseudo-mortos...
    Obviamente, quem estará morta amanhã serei eu!

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  2. Aiiii, conheço bem esse sono. E também essa vigília.
    Quando não é um motivo, é o outro. Quando o motivo é nobre, tudo bem. Quando fico por conta do prazer no dia seguinte, em slowdonw, quero me matar.
    Mas também acho, que à noite, os gatos pardos, são bem mais legais.
    Sus meninas, nosso dia começa comigo a espera de mais um do outro sexo. Por enquanto entalado. Força!!
    Marie

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  3. Ganhei de vocês...ou perdi! 3:42 hs.
    Mas gato é assim mesmo dorme de dia e vagueia de noite. Quanto vale a aposta da Valbella? Se você acertar me leva na cestinha?

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  4. Adorei esse. Até me inspirou um cochilo vespertino..

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Tenho interesse em saber sua opinião sobre meus textos.
Afinal eu poderia estar caçando ratos, não é mesmo?