terça-feira, 17 de março de 2009

Um Rei em seu Castelo



O gato chega. Chega de manso. Como só os gatos sabem chegar. Passos leves. Andar cadenciado, tão peculiar a sua espécie.
Pula na cama.
Eu finjo que ainda durmo. Estou com muita preguiça.

Hoje é sábado.
Domingo.
Feriado. Nem sei mais.
É um dia especial, dedicado a mim mesmo.
Eu sou um rei e reinarei absoluto em meus domínios.
Então está proclamado que hoje eu não farei a barba, que comerei toda a gordura da picanha mais sangrenta e que beberei toda a cerveja que quiser.
No meu castelo os cinzeiros permanecerão sujos, os jornais esparramados por toda a parte, a toalha molhada vai ficar no chão, as roupas espalhadas. Com certeza terá creme dental caído na pia e eu não vou baixar o tampo do vaso sanitário.
Hoje eu não vou vestir o que me fica bem, aliás, vou jogar fora aquele pulôver horroroso que a sogra tricotou. Também não quero saber nada de massagens, óleos, beijinhos nos pés e preliminares. Se eu quiser, sexo será somente sexo por ele mesmo.

O relacionamento deu seu suspiro final. Vinha agonizando há meses. Cobranças. Bate-bocas inúteis. Implicâncias mútuas. Fim.

Hoje é um novo dia. Uma nova vida. Começar de novo. E para isso nada como um bom descanso para refazer as energias.
Sem gravata, sem decisões, sem telefone, sem engarrafamento no trânsito, sem laptop, sem relógio ou estresse.

O que realmente importa hoje é que quero permanecer na cama indefinidamente. Curtir a minha liberdade, o meu estar só. Fazer o que bem quiser, como e quando quiser. Quero respirar fundo, espreguiçar e continuar com preguiça. Mudar de posição, virar para o outro lado e continuar a dormir.
Estou naquele estado de sonolência que beira um mergulho no espaço infinito.

Mas ainda existe um resquício de alerta em minha consciência. E é esse pouco que falta que percebe os passos que caminham sobre o meu corpo.
Mesmo sobre duas camadas de acolchoados de penas, eu sei que ele está lá.
Se estiver deitado de barriga para cima, ele se deita sobre mim. Hoje resolveu fazer do meu corpo a sua passarela.
Minha mente, um pouco mais desperta, começa a dar sinais de vida imaginando se este ato seria proposital.

– Com absoluta certeza! é a resposta.
Pois quando quer, o gato salta sobre os obstáculos. Saltos perfeitos. Milimetricamente calculados, sem sequer um esbarrão que seja no objeto a ser evitado.

Sei o que ele quer. Levanto, então, os acolchoados. Ele observa atentamente. Enfia a cara. Cheira. Sabe que não está de acordo com os seus desejos. Sou obrigado a mudar de posição. Viro de barriga para cima, dobro as pernas, permanecendo com os joelhos flexionados.

Ele, satisfeito, aninha-se na tenda formada pelas minhas pernas e as cobertas.
– Como posso eu dormir nesta posição desconfortável? pergunto para mim mesmo.
Permaneço naquele estado de sonolência nem lá nem cá, enquanto ele dorme feliz e abrigado pelo tempo que lhe é suficiente.
Tendo sua necessidade de repouso satisfeita, sai de seu esconderijo, espreguiça-se cuidadosamente e recomeça sua passeata sobre mim.

– Gato, gato! Hoje é dia de descanso, digo-lhe. Deixe-me permanecer inerte um pouco mais. Mas meu poder de persuasão não surte o menor efeito. Resolvo então abrir os meus olhos e me deparo com o seu par de olhos olhando diretamente dentro dos meus.
– Auuu! faz ele, sem desviar olhar.
Ledo engano de quem pensa que os gatos dizem “Miau!”. Todos os gatos de minha vida sempre fizeram “Au!”.

– Au! para você também, respondo sem muito entusiasmo.

Sabedor de que suas intenções começaram a surtir efeito, ele começa outro ato: demonstração de afeto.

Inclina a cabeça e passa em meu rosto. Faz uma volta em torno de si mesmo e esfrega o outro lado da sua cara. Vai até os pés da cama. Deita-se lá e, sem perder o contato visual, diz:
– Au!
Levanta-se e volta a se esfregar em mim.

São seis horas da manhã de um dia que seria dedicado a nada fazer. Mas agora
já estou totalmente desperto. Não há mais sentido em permanecer na cama.
Listo mentalmente atividades aborrecidas, por tanto tempo adiadas, e penso em colocá-las em prática.
Sento na cama. Está um dia cinzento e frio, típico de inverno. Garoa fina.

Olho com pesar para o calor da minha cama e levanto de chofre.
Caminho em direção ao início de mais um dia.

O gato? O gato, depois que me viu em pé, foi para a frente do aquecedor, onde dormiu sem culpas durante quase o dia todo. Coisa que gatos sabem fazer como ninguém.

– Esse sim é um rei em seu castelo, pensei, olhando-o com um misto de admiração e inveja.


16 de junho 2000

2 comentários:

  1. Produtividade é uma coisa...digitar, passar a limpo e postar são outras completamente diferente. São mundos paralelos, com um outro no meio...preguiça!!! Bisou.

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Tenho interesse em saber sua opinião sobre meus textos.
Afinal eu poderia estar caçando ratos, não é mesmo?