segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Tempestade no deserto


O gato pôs todo o seu corpo em estado de ataque.
Orelhas deitadas. Olhos apertados, pupilas focadas. Bigodes para frente e para cima. O rabo fazia amplos movimentos de um lado para outro.
Estava completamente motivado para a guerra.


Sua família dispunha de boa influência no Sul, de onde se originavam há muitas gerações. Mas ele não queria ser uma mera sombra do pai e do avô.
“Amendoins jamais!” Jurara a si mesmo e, abandonando as plantações da família, ingressara na Universidade de Direito de Harvard.

Aluno aplicado, conseguiu emprego numa próspera firma de advocacia na cidade de Nova Iorque. É um dos trezentos contratados, trabalha dezesseis horas por dia, seis dias por semana.
Mora em Central Park West, mas com a vida que leva não tem tempo de chegar à janela e saber se é outono ou inverno. Fuma feito um louco, alimenta-se mal, dorme pessimamente, a namorada caiu fora e ele nem percebeu, tão envolvido estava em seus processos.
A vida está passando por ele, e ele não está se dando conta.

Naquele final de semana, como de costume, havia trazido uma pilha de trabalho para casa.
Seu vizinho Michel tinha tido uma estafa e viajara para a Flórida, deixando seus dois gatos, Saddam e Clinton, aos seus cuidados.
Não tivera escapatória, quando Michel chegara do salão de cabeleireiros onde trabalhava quase em colapso por causa de uma cliente...

“Cor de castanhas, cor de castanhas”, repetia Michel com seus trejeitos afeminados exacerbados, “ela, todas as vezes, quer os cabelos cor de castanhas, mas desta vez me atormentou tanto que eu lhe disse que deveria lembrar que as castanhas poderiam ter três tons diversos: um quando estão ainda verdes, outro quando maduras, outro quando cozidas”.

E a senhora em questão, com seus setenta e muitos anos confessos, tivera a desagradável surpresa de ver suas melenas coloridas de castanhas verdes. Michel fora aliviar seu estresse na Flórida, e agora lá estava ele, a contragosto, com aqueles dois gatos em casa.

“Estou cansado, desmotivado”, digo para mim mesmo. “Imaginava o direito ser uma vocação nobre, mas já na faculdade fazemos inimigos. As pessoas aprendem a enganar e apunhalar pelas costas, e isso é tão somente o treino para o mundo real.”
Permaneço sentado na cama tentando colocar meus processos em dia. Estou encostado nos travesseiros, as pernas flexionadas, os pés apoiados no colchão.
A coberta de penas sobre os joelhos. Como sempre o cinzeiro transborda. Uma caneca tem café preto quente.

Um dos gatos, gato de rua, cor dourada, miúdo, Saddam, vem aninhar-se do meu lado esquerdo. Senta-se e começa seu ritual de higiene. Cuidadosamente lambe a pata e lava o rosto. O seu rabo permanece sob minhas pernas, mas ele parece não se importar com isso.
O outro gato, Clinton, preto e branco, bastante parecido com o Frajola, dos desenhos animados, vem pelo meu lado direito e tenta caçar o rabo do outro, que procura permanecer impassível em seu banho.
Clinton quer brigar, mas Saddam não. Por incrível que possa parecer, Saddam quer paz. E eu estou no meio do campo da batalha.
Vejo um par de patas traseiras do lado direito e um rabo que se agita freneticamente. E sinto embaixo de minhas pernas um corpo que persegue implacavelmente a cauda do outro, que insiste permanecer em paz.
Sábias palavras:
“Quando um não quer, dois não brigam.”
Saddam, ainda tenta continuar, sem sucesso, o seu banho matinal. Tirou o rabo para a direita, para a esquerda.
Aborrecido, com um ar totalmente contrariado, saiu da cama e foi deitar-se no sofá.
Clinton, satisfeito em seu intento, espichou-se todo embaixo de minhas pernas.

Deixei meus papéis de lado e, admirado, percebi que o mundo não acabou. Quanto tempo permaneci absorto na provocação dos dois? E a vida continuou.
Depois de ter observado bem esses dois, dei-me conta da sábia lição que eles me transmitiram nesta manhã.
Agora já com uma vontade louca de movimentar as pernas, que estão exaustas de servir de tendas para tempestades no deserto, decidi tomar um novo rumo. Levantei-me da cama abri a janela, deixei entrar o ar gelado do outono. Lá embaixo consegui ver, depois de muito tempo, que o parque estava todo colorido em vários tons de castanho.

15 de janeiro de 2002

4 comentários:

  1. Atão krida!
    Ando de volta por aqui, depois das férias de natal e ano novo.
    Maneta ainda e já pá o suicídio!!!
    Você é que anda inspiradíssima.
    Adorei este também.
    Beijos
    Marie

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  2. Gatos andam por toda a parte fazendo de tudo um pouco...

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  3. Oi Silvestre, sinto tua falta...gosto quando aquele passarinho bobo diz para você "acho que vi um gatinho..."

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Tenho interesse em saber sua opinião sobre meus textos.
Afinal eu poderia estar caçando ratos, não é mesmo?