sábado, 12 de abril de 2008

Era uma vez uma Galinha Ruiva...

A mulher grávida tricota um casaquinho para o bebê que está esperando. A TV em preto e branco dá uma noticia extraordinária. Ou seria o rádio?
O ano era 1964, o dia 31 de Março.
A filha adolescente passa pela sala e faz uma pergunta qualquer.
“Psiuu! Agora não, estou ouvindo as noticias.”

A mulher grávida caminha de volta para casa com a filha.
“Vieram me contar que você não gosta do bebê que vai nascer”, fala sem mais nem menos.
Ela fica chocada! Surpreende-se duplamente ao ouvir tal afirmação desvairada, primeiro pela ausência de sujeito, e depois pela sua falsidade.
Já amava aquele ser e ansiava por conhecê-lo e tê-lo em seus braços tanto quanto a mãe.
Ao chegar a casa trancou-se no quarto e chorou até adormecer.


Mês de junho. Sábado. Aniversário de uma amiga. Passou à tarde na festa. Quando voltou a mãe não estava. Tinha ido para o hospital. Finalmente o bebê estava a caminho!
Ela tinha então doze anos.


A irmã nasceu naquela noite, mas só pode conhecê-la no dia seguinte. Eram outros tempos quando regras eram obedecidas, e as visitas ao hospital eram restritas ao respectivo horário.
Foi com a avó materna.
“Finalmente alguém moreno nessa família” foi o seu comentário aprovando sua irmã com o seu selo de qualidade.
Por certo ela e o irmão tinham o selo de qualidade da avó paterna por serem mais claros.
“Sabe-se lá, os adultos são esquisitos” pensava ela, enquanto olhava o bebê através do vidro do berçário. Observou admirada/horrorizada que o seu bebê tinha o rosto sujo de sangue.


O primeiro dia que a família toda se aventurou a sair depois da chegada do novo membro, foi um domingo para almoço na casa dos avós. Aquele dia era o primeiro passeio da irmã. Naquele tempo recém nascidos permaneciam trancafiados no cofre, só tinham autorização para irem ao pediatra e voltarem para casa. Passearem só depois de dois meses.
O grande dia chegou! Foi preparado um arsenal de guerra:
fraldas (não, não era a época das fraldas descartáveis), cueiros (alguém sabe o que é isso?), calças plásticas, mamadeiras, (a mãe jamais usaria uma potinho da Nestlé), mantas, casaquinhos, sapatinhos, toucas (quem já viu um bebê de touca?), sacolas... tudo o que uma criança temporona poderia precisar e muito mais.
Afinal estavam indo passar algumas horas na casa da avó logo ali... imagine se fosse uma viagem para um lugar com menos recursos, o que não levariam.

O bairro onde moravam estava começando a ser habitado. Existiam muitos terrenos baldios, e muitos insetos. Portanto era preciso dar um jeito nas moscas e mosquitos. Nada melhor do que aproveitar a saída de todos e dar umas bombadas de Flit na casa. O tal do Flit era um inseticida colocado dentro daquilo chamado bomba. Um objeto rudimentar, pré-histórico, como um cilindro, e que num movimento constante de puxa e empurra de uma espécie de êmbolo que liberava o veneno bastante fedorento.
A pequena mudança já estava acondicionada, o pai, ela e o irmão acomodados dentro do carro aguardavam o momento da largada. A mãe ficou encarregada de fechar a casa e passar o Flit.
Finalmente! Todos prontos?
Podemos ir embora?
Não falta nada?
Cadê o bebê?
Como ninguém pegou?


“Me conta a história da galinha ruiinnva?” A irmãzinha pedia.
“Era uma vez uma galinha ruiva que encontrou um grão de trigo...”
Mal acabava...
“Me conta a história da galinha ruiinnva?”
“De novo?”
E durante infância da irmã a galinha ruiva plantou e replantou aquele grão de trigo, fez e refez aquele pão infinitas vezes, pois ela se recusou a introduzir bruxas e lobos no mundo da criança.
Queria poupá-la das coisas ruins da vida nem que para isso tivesse que contar sempre a mesma história:
"Era uma vez uma galinha ruiva"...


Num aniversário da irmã o tempo não colaborou nem um pouco. As crianças foram obrigadas a permanecer dentro de casa. Com um “pequeno” detalhe: a mãe não queria gritarias e nem correrias pela casa e fazia questão de permanecer em paz na sala de visitas conversando com suas amigas.
Foi designado para as crianças permanecerem no maior aposento da casa. Elas cheias de energia, num dia de chuva, numa época em que não havia DVD, karaokê ou videogames; um dia que absolutamente nada havia sido preparado para uma emergência desse tipo; uma situação que precisava ser controlada por uma adolescente que não tinha a menor idéia do que fazer para que as horas passassem rapidamente e aquela festa acabasse de uma vez por todas.
Evidentemente havia um líder agitador de massas que provocava a rebelião entre os convidados.
A pressão era muita e como uma panela Marmicoc ela explodiu, por um motivo qualquer brigou com todos e colocou-os de castigo, aniversariante e convidados, confinados, fechados no quarto!
Como a irmã deve tê-la odiado! Que lembranças terríveis deve ter daquele aniversário! Que comentários deve ter ouvido na escola nos dias seguintes a festa?
“A festa dela foi uma droga! A irmã dela nos deixou de castigo no quarto!”
Fazer o que?
De um lado a mãe pressionando:
“Dê um jeito nessas crianças!”
Do outro lado as próprias no auge da sua peraltice.
O mínimo que ela pode fazer pela irmã nos dias de hoje oferecer algumas sessões de terapia para solucionar o trauma da festa de aniversário confinado se houver. Caso contrário quem deve fazer terapia é ela para resolver a sua culpa, por ter sido uma estraga festas.
Se fosse hoje deixaria os bichos soltos e a mãe que se virasse. Onde é que já se viu?


Ela deveria ter uns dezesseis, dezessete anos quando a rua onde moravam começou a ser asfaltada. Nem estava pronta ainda e os meninos da vizinhança já desciam ladeira abaixo com seus carrinhos de rolimã. Ela estava louquinha de vontade de juntar-se a eles, mas o pai já havia decretado:
“Não quero te ver na rua com os moleques!”
“Cruzes! Que horror! Como é que ele fazia isso? Ler os meus pensamentos? Como é que ele sabia que era justamente o que estava querendo?”
Tudo bem ela não podia.
Mas o pai não falou nada sobre satisfazer o desejo incontrolável da irmã.
“Hei! Você quer andar de carrinho? Te dou um pirulito depois!”
Lá foram as duas de mãos dadas, carrinho de rolimã surrupiado do irmão embaixo do braço, se misturar com a molecada.
Riram e brincaram um bom tempo. Na maciota, pois um dos meninos arvorou-se de empurrá-las todas às vezes. A única vez que ela foi empurrar o carrinho torceu o pé e caiu com a mão esquerda espalmada no asfalto fresco.
“Merda!”
Uma das vizinhas solicita, correu acudi-la, limpar o sangue, tirar as pedrinhas do ferimento.
Acabou-se o que era doce.
Voltaram as duas de mãos dadas, ladeira a cima, carrinho de rolimã surrupiado do irmão embaixo do braço, ela mancando e ainda por cima com a mão toda ralada.
Se fosse só o pé podia dar uma desculpa qualquer, mas a mão! Ainda mais com aqueles pedacinhos de asfalto incrustados nela... não tinha a menor chance!
Hora do jantar. A família reunida. Tudo transcorria normalmente. O pai não percebeu nada mesmo estando sentado ao seu lado. Ela deu um jeito de manter a mão no colo, embaixo da mesa durante toda a refeição. Dos males o menor: já pensou se fosse a direita?
Mais um pouco e poderia ir para o quarto.
A irmã, sua cúmplice e companheira, sentada na sua cadeirinha ao seu lado, lambuzada de sopa, diz candidamente:
“Você não vai mostrar teu dodói pro papai?”

12/04/08





3 comentários:

  1. Hey Murphy....
    Deliciosa essa crônica....Adorei, principalmente pela Galinha Ruiva... se te conto que foi o primeiro livro que li inteiro em toda a minha vida... Tinha 4 anos e quando cheguei para minha mãe contando que sabia ler, me olhou duvidosa e depois boquiaberta a medida que ia juntando as sílabas e lendo as palavras que daquele jeito ficavam absolutamente sem sentido para ela, completamente maravilhosas para mim que tinha finalmente conseguido decifrar o segredo daquelas formiguinhas pretas retorcidas que eram as letras....
    Minha irmã também era dedo-duro...
    Adorei...
    Quanto ao meu manequim... só é P por conta de um erro de distribuição genética. Acho que quase nasci numa família de anões, a cegonha errou o caminho ... assim, sou P de Pequena mesmo, não de magrinha, nem de Perfeita....
    A ver se nos damos bem então??!!??
    Beijão

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  2. Tem ligações que só se explicam pelo karma mesmo...
    Começo a entender algumas reações e comportamentos seus.
    Freud, Freud... onde estás?

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  3. Você tem certeza?
    Acha que eu cacarejo?
    Ou é alguma coisa relacionada a pães?
    Cor de cabelos?
    Coitado do Freud!

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Afinal eu poderia estar caçando ratos, não é mesmo?