quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Vestida para Dançar



Se possuía alguma frustração por não ter tido um filho homem, ninguém jamais soubera. Tivera quatro filhas mulheres e, mesmo contra a vontade da esposa, escolhera seus nomes de acordo com aquilo que a vida lhe reservava no momento de seus nascimentos.
Haviam acabado de se casar quando os primeiros bombardeios alemães chegaram ao vilarejo onde moravam. Ouviam notícias de uma guerra e esta lhes parecia tão distante dali, pois imaginavam em sua inocência campesina que estariam sempre protegidos pelas montanhas que circundavam o vale onde se localizava, quase que esquecida do mundo, sua pequena vila.

Medo.
Um sentimento que tanto pode levar à morte quanto salvar uma vida. Pode ser tão intenso o ponto de endurecer todos os músculos, fazendo com que se permaneça estático, paralisado no mesmo lugar. Ou intenso da mesma forma, fazendo correr e fugir sem jamais olhar para trás.

Num ímpeto, movido pelo desejo de permanecer vivo e poder desfrutar o amor recém-descoberto com sua jovem esposa, decidiu fugir.
Tomou conhecimento de um navio que zarparia para a América, e malgrado todas as dificuldades, mesmo cheio de incertezas, dúvidas e preocupações, mas com um sonho no coração, eles partiram.
A viagem foi longa, assustadora. Não tinham conforto algum, pessoas adoeciam, o perigo rondava em forma de submarinos inimigos. A mulher começou a passar mal, ele se desesperou. Questionava-se se a fuga havia sido a decisão correta. Que faria sozinho numa terra estranha se ela viesse a falecer?

Agradeceu a Deus quando em poucos dias chegaram ao seu destino sãos e salvos. Assim que atracaram puderam procurar um médico, que não diagnosticou a morte, e sim a vida: ela estava grávida!
Ele aceitou a gravidez da esposa como um bom presságio, e quando a menina nasceu chamou-a Esperança.
O começo foi muito difícil. Todavia, cada vez que olhava para a filha, com seus olhinhos brejeiros e seu sorriso inocente, encontrava forças para seguir adiante.

Anos se passaram. Começavam a colher os frutos de seu trabalho árduo quando nasceram as gêmeas. A vida tornava-se mais leve, assim as meninas receberam os nomes de Ventura e Felicidade.
Ela ainda amamentava as gêmeas quando engravidou outra vez. Nasceu Fé, que nunca haviam perdido durante todos aqueles anos.

Porém, homem religioso que era, ao ouvir o sermão dominical, uma frase permaneceu ecoando dentro de si:
“Fora da caridade não há salvação!”
“Teremos outras filhas”, e num rompante registrou o bebê Caridade.

Mas não tiveram mais filhos. Somente as quatro meninas: Esperança, Ventura, Felicidade e Caridade.

Filhas casadas, netos criados. O casal, com sua missão cumprida, partiu. Ela morreu em março. Ele não sobreviveu um mês longe de sua companheira de jornada e faleceu logo em seguida.

Esperança beirava os setenta. Das irmãs, por ser a primogênita, foi a que acompanhou mais de perto as dificuldades dos pais no processo de adaptação àquela terra estranha. Enviuvou cedo e criou os filhos sozinha. Contudo as adversidades da vida não a tornaram uma mulher amarga. Pelo contrário, estava sempre alegre, conservando o mesmo sorriso que incentivara o pai a não desanimar. Tinha uma palavra amável para quem precisasse.
Gostava de dançar e nunca dizia não quando recebia um convite para um sarau destinado à “melhor idade”, por mais cansada que pudesse estar.
“Quem dança seus males espanta” dizia.
“Não é assim...” corrigiam os filhos, depois os netos... “...é quem canta seus males espanta”.
“Vocês já me ouviram cantar. Pediram que nunca mais abrisse a boca, tamanho desafino. Deixa eu espantar meus males com aquilo que sei fazer” respondia rindo.

Naquela tarde arrumou-se com especial esmero. Cabelo bem-penteado, unhas feitas. Passou perfume, deu uma última olhada no espelho. Estava pronta, vestida para dançar.
Foi atropelada bem próximo ao local onde se realizava sua tarde dançante.

Contrariando o dito popular, Esperança não foi a última que morreu.

Florianópolis, 9 de outubro de 2008



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