sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Ditado

De repente sem mais nem menos vinha a ordem:
“Peguem seus cadernos de ditado!”


Um frio na barriga. As mãos ficavam úmidas com um suor gelado.
Fazia-se um silêncio sepulcral na sala. Não que um colégio de freiras do século passado fosse alguma coisa divertida.
E século passado não viagem vocês aos tempos das anquinhas, carruagens e mil réis.
Não precisam ir tão longe assim. Se chegarem até a guerra do Vietnã já é uma boa viagem.

Além do caderno ser de ditado, ele era de caligrafia também.
Largas linhas pintadas de amarelo. Isso tinha um duplo significado, aliás, triplo: obrigava-se a escrever dentro da tal linha amarela, saiu fora...
(ah! um mero detalhe escrevia-se a lápis. Borrachas não entravam no recinto jamais. Caso isso acontecesse eram confiscadas e a criminosa levada à presença da temida “soeur” onde permanecia sentada fazendo absolutamente nada durante horas a fio temendo pela sua vida)...

Além de escrever dentro da linha, a letra tinha que ser perfeita, redonda, legível, ai de quem se atrevesse sair do padrão... isso após passado o treinamento das letras de forma. Primeiro as de forma ...todo mundo na forma...todo mundo igual...saia azul marinho camisa branca, meias, sapatos, cadernos, lancheiras...
Pergunto-me como não nos transformamos em robôs?

E finalmente o ditado por ele mesmo.
Não era aterrorizante para uma criança de oito, nove anos?

A professora lia o texto uma vez.
Era do livro do mês. Isso era bom. Muito bom. Apesar de ser mais uma obrigação tínhamos que ler dois livros por mês e fazíamos trabalhos sobre eles, resumos, apresentações em classe, e os tais ditados.

Minha cabeça trabalhava a mil rotações por segundo tentando lembrar o que havia lido.
Então começava a tortura.
“Escrevam: Ditado”
Mas o caderno já não era para esse fim?
Titulo...

E lá seguíamos nós com as nossas dúvidas cruéis:
“é cê-cedilha? dois esses? Porque junto, ou separado, a tem crase ou não?”
Dúvidas essas que só seriam respondidas com notas que iam de um mísero regular ao supra-sumo de um excelente!!! em tinta vermelha no outro dia, ou alguns dias depois conforme o trabalho da professora, que naquele tempo era professora mesmo e jamais uma “tia”.
Em minha opinião tia é parente, irmã de pai ou mãe, mas como ninguém me perguntou nada, melhor ficar quieta.

Como todo texto que se preze ela então ditava.
“Ponto. Na outra linha... travessão!”
Sabíamos então que aquele parágrafo estava acabado. Finito.
Mudar de linha era uma mudança de estado. Mudança de interlocutor. Mudança. Coisas novas e diferentes iriam acontecer.

Mas e o travessão? Quem fim deu ele?
Confesso estou desatualizada. Mudanças ocorreram. No mundo. Na vida. Na gramática.
Os uniformes azuis marinhos estão no museu do colégio, as freiras deixaram o convento, cadernos de caligrafia estão em desuso.

Ponto.
Na outra linha...
Travessão? Você ainda está ai?

2 comentários:

  1. Foi só começar a ler e tudo voltou, como num filme (em preto e branco), o friozinho na barriga, as mãos que tremiam e que dificultavam a letra perfeita, e o ditado que não acabava nunca!
    Que bom "te" ler minha amiga!

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Tenho interesse em saber sua opinião sobre meus textos.
Afinal eu poderia estar caçando ratos, não é mesmo?