domingo, 6 de abril de 2008

Calamidade Pública

Antes eram chamados de kitinetes. Depois foram promovidos a studios. Agora são anunciados como apartamentos compactos. Tudo variação sobre o mesmo tema: o espaço mínimo para um ser humano viver. Quarenta metros quadrados... Esta medida deve comportar quarto, cozinha, sala de estar, jantar, lavanderia, escritório. O milagre da multiplicação.

Na maioria das vezes temos as coisas como tão certas que nem nos damos conta delas. Um exemplo?

O banheiro.

Banheiro?

Por que essa cara de nojo?

Não vai me dizer que não usa banheiro?

Caga onde? Na cozinha?

Não sei o porquê desse preconceito, tanto quanto do pobre do cômodo quanto do próprio ato em si. Conhece alguém que seja tão nobre, ou tão metido a besta, que nunca tenha cagado? Eu não. Aliás, queria ver alguém que ficasse sem fazê-lo por uns dias no que se transformaria. Por certo a merda iria consumi-lo, sairia por seus poros em forma de suor e teria bafo de merda também. Essa criatura corria o risco de desintegrar-se, de sumir pelo ralo caso puxassem uma descarga ao seu lado.

E continua com essa cara de enjôo mediante a simples menção da palavra merda ou aquele seu sinônimo que enche a boca, bo – s - ta?

Há cerca de cem anos não existam banheiros como os de hoje em dia. Para ninguém. Nem mesmo reis, rainhas ou o papa tinham um mísero banheiro. Já foi consenso entre os humanos que não adiantava ter grana porque todo mundo fedia igual. Ricos e pobres, o bodum era o mesmo.

Ela sempre tivera uma vida confortável. O apartamento onde morava com o ex tinha duas suítes, lavabo e banheiro de empregada. Mas os tempos mudaram. Separou-se. Mudou de vida. De casa. Foi morar num ...”apartamento compacto” . Uma gracinha! Casa de boneca!
Até que...

...a privada entupiu!

Vai me dizer que nunca passou por isso?

Aquela sensação maravilhosa do dever cumprido. Você olha para o vaso e pensa com orgulho:

“Que bela cagada!”

E dá a descarga, como sempre.

Só que a água, em vez de descer, enche, cresce, multiplica-se... aproxima-se da boca do vaso ameaçando transbordar e alagar tudo com sua obra prima malcheirosa. Sobe... sobe... e pára bem na beira.

Foi o que aconteceu naquela manhã.

Ela estava atrasada, muito atrasada. O despertador tocou, virou para o lado continuou dormindo. Quando levantou, já era. Para piorar, o intestino que normalmente não funcionava, resolveu dar o ar de sua graça. Não só uma, mas mais de uma vez. Seja a quantidade ou a qualidade, se soubéssemos o que causa entupimento, os rooters-canos da vida não precisariam mais existir.

Enfim a profecia cumpria-se: “Tudo o que dá errado ainda pode piorar.”

Não, não podia respirar muito fundo para ficar calma. Teria que dar um jeito. Manter a cabeça fria era essencial. Manter baixo o nível da água, idem. Deu uma descarga curta, pouca água.

Sobe, desce. Enche, esvazia.

Enfiou-se embaixo do chuveiro gelado. Detestava água fria. Mas, nessa altura do campeonato, fazer o que, já estava tudo perdido mesmo.

Olhou de rabo de olho para a privada ao sair do banho. A água esgotara toda. Só sobrou o que? A merda, óbvio.

Coca-cola lembrou, não dizem que desentope tudo? Quantos litros seriam necessários para jogar ali? Mas não tomava coca, só Pepsi, será que é a mesma coisa? E tem mais, quer dizer, menos, não tinha nem uma, nem outra, muito menos pretendia sair para comprar refrigerante para jogar na privada.

Decidiu: não iria mais a lugar algum enquanto não desse um fim naquele transtorno. Já pensou voltar à noite morrendo de vontade de fazer um mísero xixi e encontrar seu único banheiro naquele estado de calamidade pública?

Declarou guerra à bosta: “Vencer ou morrer!” E deu a descarga novamente.

A cada vez que voltava para certificar-se de que a água já havia escoado, lá estava aquele pedacinho de merda espreitando num cantinho escuro. Ela dava a descarga.

“Agora ele vai”, pensava.

E, realmente, por segundos ele desaparecia levado pelo jato da água. Para reaparecer provocativo logo em seguida. Tinha a nítida impressão de que ele estava zombando dela. Assim que ela virava as costas ele vinha, sabe Deus de que canto obscuro das entranhas daquela privada, para ficar encarando-a. Cada vez que olhava para dentro do vaso lá estava ela, a merda teimosa, a que fingia que ia, mas que sempre voltava para aterrorizá-la.

“Que merda!” Literalmente. Que corpo estranho ela tinha expelido? Um pedaço de ferro? De aço? O que era aquilo que a água não levava, diabo verde não dissolvia, desentupidor não desmanchava?!

Agora era uma questão de honra! “Ou ela ou eu”, pensou. “Esse território é pequeno demais para nós duas.” Tomou uma difícil decisão: a merda iria embora, nem que fosse no muque. Não se comoveria com aquele olhar pidão. Afinal, só tinha aquele banheiro, não podia bater na porta do vizinho pedir para usar o banheiro dele. E se acontecesse a mesma coisa? Procuraria o próximo vizinho? Bateria de porta em porta entupindo todas as privadas do prédio até que a Defesa Civil interditasse o prédio?

Como não tinha luvas de borracha, o jeito era improvisar.

“Sacolas de supermercado”, brilhante idéia. Embrulhou a mão até o cotovelo. “Uma sacola não era o suficiente. Duas... três por garantia... melhor quatro... talvez cinco, nunca se sabe. Precaução nunca é demais”. Aquela merda parecia ter vida própria, vai que resolvesse atacá-la. Para o embrulho ficar bem seguro uma camada de filme plástico.

Ajoelhou, fechou os olhos, mirou bem o centro e mergulhou o braço bem no fundo, tateando o infeliz buraco ou seja lá que raio de nome pudesse ter aquele local por onde a água deveria fluir sem problemas. Não encontrou nenhum corpo estranho que pudesse estar causando a obstrução.

Sentada ao lado do vaso sanitário pensou ter chegado ao limite da decadência de um ser humano. Quando ouviu um ruído esquisito de água. Algo como um gargarejo.

E a água finalmente escorreu, livremente, tubulação abaixo.

Descobrira o que onde está a verdadeira felicidade:
Não está numa viagem a Paris, nem num apartamento na 5ª. Avenida.
Não está num diamante Cartier, e nem numa Ferrari.

Ser feliz é saber que sua privada está livre e desimpedida para poder ser usada a qualquer instante.

4 comentários:

  1. Hahahahaha...
    Murphy, murphy!
    Muito bom. Boas risadas. Quem nunca passou por isso????
    Solução genial. Gran finale.
    Parabéns
    Um beijão
    Marie

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  2. ha :)
    ótima cronica
    beijos de karlsruhe

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  3. Veja que tudo na vida tem um lado bom! No mínimo vira texto de blog depois e serve pra divertir a galera!!!

    Ainda vou reunir Silvestre e Murphy numa mesma mesa! Vcs precisam se conhecer :-)))

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  4. ...e o que você fará no meio de nossos mewaooos dadas as tuas restrições?

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Tenho interesse em saber sua opinião sobre meus textos.
Afinal eu poderia estar caçando ratos, não é mesmo?