sábado, 5 de abril de 2008

Um limão entre laranjas.

Existe família que não tenha ninguém com mais de setenta anos? Vasculhando seus conhecidos não conseguiu lembrar de alguém que não tivesse nem um único parente na chamada “melhor idade”. Sabia que um dia chegaria lá também. Os sinais externos eram visíveis tanto no espelho quanto fora dele.

Lembrava de quando era mais nova e gostava de pegar na pele flácida do braço da avó para sentir sua textura. Possivelmente a avó não achava graça, mas nada dizia.

Hoje só de olhar para o seu braço podia perceber que sua própria pele já não era mais tão jovem e firme por mais hidratada que estivesse de fora para dentro, de dentro para fora e todos os outros blás, blás, blás...

Ainda outro dia o olhar atento da filha da amiga sentenciou (uma criança de quatro anos é sempre um perigo!):

“Você não tem o pescoço dobrado!”

Criança querida e bem educada! Ela, na sua inocência, confirmou que o coquetel Molotov de vitamina C com colágeno aplicado nas dobras do seu pescoço em 365 picadas, graças aos céus, funcionara. Valeu o sacrifício de cada uma das agulhadas transformadas em caroço de ervilha, obrigando-a usar gola olímpica durante quinze dias em pleno verão.

Sempre se podia dar um jeito no lado de fora. Um reboco aqui, uma massa corrida ali, uma mão de tinta, uma reforma básica e fica tudo quase como novo. Mas o que lhe tirava o sono, deixando-a com mais olheiras e rugas, eram as atitudes gagá das mulheres de sua família. Morria de medo de ficar como elas. Genética é genética, todos sabem que a fruta não cai longe do pé...

Rezava para que com ela fosse diferente.

Psicólogo, Psiquiatra, PNL, Geriatra, Ortomolecular, qualquer coisa para o cérebro continuar funcionando.

Naquele dia, entrou na confeitaria, pediu um refrigerante com hipocrisol e uma trufa de chocolate para contrabalançar. Dizem as más línguas que as verdadeiras curitibanas pedem salada, tomam refrigerante diet e comem uma torta de chocolate como sobremesa. Para elas essa é uma refeição perfeitamente equilibrada. Maldade pura.

As mesas eram coletivas. Sentou quieta em seu canto pensando em nada, mas como audição é uma coisa que não tem botão de liga/desliga, começou a ouvir a conversa das companheiras de mesa. Duas senhoras de cerca de...hoje em dia é difícil precisar...mais de sessenta e cinco?
Que seja.

Uma já estava instalada. A outra chegou, o lugar estava livre, pediu licença, sentou. Não se conheciam. Começaram a conversa elogiando os doces.

A primeira falou que aguardava a filha. Tinham saído para comprar o enxoval da moça que estava para casar (começaram a trocar confidências). Depois do casamento, quando tivesse mais tempo livre, pretendia aprender a bordar.

A segunda incentivou-a dizendo que já tinha feito aulas de ponto cruz, recebeu diploma que lhe dava até direito de lecionar!

Uma contou sobre seu grupo de caminhada, a outra falou de suas aulas de dança e sobre os saraus de sábado à tarde, também chamados “bailes do pãozinho”:

“Porque baile do pãozinho?”, perguntou, curiosa.

“Do lado da aula tem uma panificadora, e descobrimos que um dos velhinhos comprava um pão Francês e punha no bolso da calça para fingir que ficava com tesão ao dançar!”, explicou a dançarina e riram às gargalhadas da artimanhas do garanhão frustrado.

Ela ouvia a conversa e não podia deixar de lembrar de sua mãe. Anos atrás, ao convidá-la para fazer um curso de bonecas de pano, obteve como resposta:

“Eu? Sair de casa para aprender a fazer bonecas de pano? Tudo o que deveria ter aprendido nesta vida já aprendi. Não quero aprender mais nada!”

Ela lembra de ter ficado tão indignada com a resposta que sugeriu para a mãe que comprasse seu caixão, colocasse-o no meio da sala, deitasse dentro e lá permanecesse esperando a morte chegar. Para ela alguém que se recusa a aprender alguma coisa é porque já morreu, essa foi a sua conclusão.

Lembrava também da tia de oitenta e cinco anos, que muito se orgulhava de aparentar setenta. Na maioria das vezes ela tinha uma cabeça muito mais aberta do que sua mãe que, essa sim, tinha realmente setenta. Com cabeça de oitenta e cinco, quem sabe? Mas, mesmo para a tia cabeça aberta, quando o assunto era alguma espécie de atividade, qualquer que fosse, até mesmo bordado, tricô ou crochê, a conversa virava tabu. Sabia tudo o que se passava no mundo, mas não fazia nada, não gostava de nenhum trabalho manual.

Ela, às vezes, provocava:

“Tia, eu venho sábado te buscar para irmos dançar no programa da terceira idade.”

A tia muito ofendida respondia:

“Imagine se vou dançar com aqueles velhos!”

Quem ela queria como par? Brad Pitt? Será que se ela soubesse do truque do pão Frances não mudaria de idéia?

Por essas e por outras, ia verificar qual era o santo dedicado à agricultura, e se tornaria sua mais fiel devota. Faria promessas, novenas, rezaria o terço de joelhos dia e noite, noite e dia. Pediria pelo milagre de ser um limão no meio das laranjas da sua árvore genealógica, ou então, que, com um impulso, caísse bem longe do seu pé.

4 comentários:

  1. Hello Mrphy...
    Muito inspirado e divertido esse seu texto.
    Claro, lembrou-me muito minha família e eu mesma.
    Mas que limão, tento não ser tão melancia, hihihi...
    Adorei
    Beijão
    Marie

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  2. Olha, a filha dessa sua amiga continua fazendo comentários cada vez mais cruéis! Essa semana disse o seguinte vendo a alça do sutiã que apertava as costas da mãe: "Por que tem esse gordinho aqui?" A resposta foi: "Daqui a 30 anos a gente conversa!!!"
    Dureza... Será que é herança genética direta da avó?!!! Socorro!!!

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  3. Você como sempre, muito sagaz e inteligente, escreve muito bem levando uma mensagem disfarçada por um texto leve e bem humorado.
    Parabéns, continue por essa estrada esta é a sua praia
    Bjs
    PP

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  4. Meu caro anônimo, me explique bem, que não tomei meu suco de aloe vera kkkkk afinal é estrada, ou é praia? Ou é uma estrada que leva a praia?

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Tenho interesse em saber sua opinião sobre meus textos.
Afinal eu poderia estar caçando ratos, não é mesmo?