terça-feira, 24 de novembro de 2009

Minnierella, e o sapatinho que não era de cristal.

– Quatro! Eu tenho quatro anos!
Com uma mão na cintura, batia o pé e mostrava os quatro dedos uma enfurecida Zizá, aquele espirro de gente, uma semana antes do seu quarto aniversário.
Não tinha pressa de que o dia da festa chegasse rápido para brincar com os amiguinhos, para comer doces, ganhar presentes, roupas novas... nada disso! Sua pressa era em ter quatro anos, em tornar-se uma criança um ano mais velha. Só isso.
Coisa de criança. Pois, enquanto os adultos querem mais é diminuir sua idade, a criançada é louquinha para aumentar a delas.

Por mais que me esforce, por mais que procure nas minhas lembranças, não consigo encontrar o momento em que me tornei adulta. Se bem que, ao olhar para trás e mesmo para os lados observando a criançada, percebo que não há UM momento. Um Cabo da Boa Esperança, que, ao ser cruzado abre os caminhos para as Índias com seus mistérios a serem desvendados.

– Paiê, ela não gosta de Natal! Por que você não gosta de Natal?
Afirmava e perguntava um confuso Davi, muito indignado por ter tomado conhecimento da existência de um ser que não compartilhava do mesmo prazer natalino que ele.
– Mas você não gosta meeesmo de Natal? Perguntava ele, desconfiado, como se tivesse acabado de me ver descer de uma nave espacial ali mesmo na mesa de jantar.

Convenhamos, o tal Papai Noel é uma figura muito assustadora para uma criança pequena. É só fazer um teste. Nem dói. Abaixe-se. Fique de joelhos, da altura de uma criança. Imagine agora que se aproxima de você um Papai Noel. O que é que você vai enxergar? As botas pretas, as calças vermelhas, um barrigão, se tiver sorte e pegar um bem-nutrido, pois, convenhamos, há uns magrelos de dar dó. Aquele monte de barba branca. Se ele for generoso e o cachê permitir, estenderá as mãos calçadas em luvas brancas e oferecerá balas. Você ouvirá, então, lá dentro de si mesmo, por mais tentadoras que sejam as balas, a voz de mamãe dizendo:
– Nunca aceite balas de estranhos! Não pegue nada de gente que você não conhece!
Você olha para o cara meio desconfiado e percebe que ele tem um saco... de tecido, ou nas costas, ou próximo de onde estiver. Isso só vai servir para piorar a sua avaliação, porque vai trazer à sua lembrança uma figura que povoa seus pesadelos, o tal do Velho do Saco, aquele que leva criancinhas, sabe Deus para onde.
Agora, ainda querem me convencer que o tal do Papai Noel é um cara do bem?

E havia mais um detalhe: todo ano lá vinha o bom velhinho para levar minhas chupetas.
Vejam só: Chupeta em inglês chama-se “pacifier”. Traduzindo grosseiramente, “pacificador”.
Então, nossa querida mãe decide que devemos ser criaturas pacíficas. E nos apresenta a tal da chupeta. Chega, às vezes, até mesmo a passar um açucarzinho no bico para que fiquemos doces e pacíficos. Mas na hora que decidem que chega, resolvem nos tomar aquilo que nos deram.
E o pior que quem vai levar a nossa segurança embora não é ninguém mais ninguém menos que o tal do Velho do Saco. Não é enlouquecedor?

Durante anos foi travada lá em casa a batalha do “deixa de chupar chupeta”.
Muitos foram os argumentos contra seu uso: “Você agora já está uma mocinha”, “Você já está na escola”, “O que seus amigos vão dizer?”, e assim por diante.
E também foi usada como moeda para troca por muitas coisas: “Se você der a chupeta para o Papai Noel, ele trará isso, aquilo, aquele outro”.
Era um cabo-de-guerra.
Não lembro quando nem como, mas um dia eles venceram. A chupeta desapareceu definitivamente da minha vida. Vai ver que foi aí que comecei a ser gente grande.

As cascas de ferida são outro mistério. Aquelas nos joelhos principalmente têm todas a cara da infância. E daquelas infâncias bem-aproveitadas, nas quais se subia em árvores e se esfolavam os joelhos, andava de bicicleta, caía uns tombos, esfolava os joelhos, brincava de pique e esconde-esconde, corria, caía, esfolava os joelhos...
Andava, virava, mexia, lá estava ele, o joelho, ensangüentado sendo limpo pela mãe com água oxigenada e mercúrio cromo, enquanto eu, entre soluços, tentava explicar qual era a arte da vez.
O machucado começava a se cicatrizar e a casca ia se formando, umas maiores, outras menores. Umas repuxavam tanto e a vontade de se ver livre logo daquilo era insuportável e a tentação era tão grande que... um puxãozinho de leve, só um...e lá estava o machucado sangrando de novo.
À medida que fui me tornado adulta, equilibrando-me melhor nos meus passos, deixei de cair e de esfolar os joelhos...

Hoje em dia as crianças são adultos em miniatura. Basta olhar para as meninas de sete, oito anos. Batom, unhas pintadas e, pasmem, saltos altos.
Mussolini, Hitler ou Stalin teriam orgulho das regras da minha mãe. Salto alto? Só depois dos quinze anos. Ordens dadas, ordens obedecidas.

Na minha festa de aniversário de treze anos, duas de minhas amigas chegaram usando saltos altos. Isso é modo de dizer. Nos anos setenta havia só um modelo de sapato para “meninas-moças”. Era vendido numa loja chamada Cinderela, branco com um laço em cima e salto de cerca de dois centímetros.
Como só existia esse modelo, as duas chegaram juntas, usando sapatos iguais. Mas, para nós, as sem salto foi um OOOHH!!
Minha mãe, de imediato, taxou-as de ridículas afirmando que pareciam a Minnie e a Margarida.
Nós não estávamos nem um pouco preocupadas com a opinião dela. Estávamos morrendo de inveja, louquinhas para ser ridículas também.
No decorrer da festa, que era ao ar livre, as sem salto corriam, brincavam... Sim, naquela época adolescentes sadias brincavam, enquanto Minnie e Margarida só observavam, pois não podiam enfiar seus sapatinhos de salto na grama para não sujar.
Com certeza nessa hora foram elas que ficaram com invejam de nós.
Revirando esse baú de memórias, eu revejo esse momento como um filme. Um bando de meninas de treze anos correndo despreocupadas pelo gramado, enquanto duas outras em seus sapatos de salto só observam...
Elas têm vontade de entrar na brincadeira com as amigas, mas não podem. Não conseguem correr, pois irão sujar seus sapatinhos novos de Cinderela.
Talvez ainda não estivessem totalmente prontas para adentrarem no mundo das moças, quem sabe? Mas agora já deram um primeiro passo.

Existem mudanças que são inevitáveis.
Não é questão de querer ou não querer. A natureza simplesmente se encarrega delas. Enquanto muitas das minhas amigas se preocupavam por ainda não terem menstruado aos quinze anos, eu já era uma veterana nessa idade. O que não foi vantagem alguma, muito pelo contrário. Sempre tive muita cólica, um fluxo intenso, era muito infantil, estava muito mais interessada em brincar, correr pela rua. O absorvente nunca parava no lugar...
Não, criaturas, naquele tempo, que nem era idade das pedras, não haviam inventado ainda o absorvente aderente à calcinha nem o com abas. O que se usava era um aparato obsoleto, uma espécie de elástico que engatava o absorvente nele, que não servia para nada, pois o absorvente saía do lugar, vazava, era uma baixaria...

O meu corpo foi se tornando adulto, e com o passar dos tempos eu segui a sua caminhada.
Quando fiz quatorze anos, minha avó, contrariando os princípios fascistas da minha mãe, presenteou-me com os sonhados sapatos de salto. E conseguiu a proeza de encontrar um modelo completamente diferente do padrão da época.
Pode ser que até como todo adolescente eu nem tenha gostado tanto assim, pois queria ser exatamente igual aos demais. Mas de qualquer forma eu tinha ali, ao alcance das minhas mãos, o meu passaporte para o mundo dos adultos.

Naquele ano, no meu aniversário, já não teve mais correria no quintal.
Agora todas éramos Minnies e Margaridas. A festa até deve ter sido mais aborrecida, mas com certeza nós não demos tanta importância para isso.
Nossos olhos começavam a brilhar pelo Mickey e Pato Donald.
Estávamos deixando nossa infância para trás.

22 de novembro de 2008

Esse conto foi publicado no livro Travessia com o nome “Correndo de Salto Alto”

Um comentário:

  1. Esse eu ja tinha lido, mas foi muito bom reler.... que viagem!!!!!!
    Bisou

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Tenho interesse em saber sua opinião sobre meus textos.
Afinal eu poderia estar caçando ratos, não é mesmo?